Carlos Matos Gomes
5 min readOct 1, 2019

Uma leitura cabalística

A crítica ao vazio e a promoção da Literatura

Realizou-se no dia 28 de Setembro de 2019 uma sessão evocativa dos 40 anos de vida literária de António Lobo Antunes. Uma excelente iniciativa. Todas as iniciativas que promovam a escrita e a leitura de autores portugueses são excelentes.

É também excelente para a sociedade portuguesa enaltecer o que tem de melhor em todas as áreas da atividade dos seus cidadãos, das artes, à ciência, ao desporto, à ação cívica, política. Vivemos numa sociedade de comunicação, espetáculo e competição. Quem não aparece, desaparece, não existe. Nós, os portugueses, queremos existir e merecemos existir.

A literatura, como ramo das artes, encontra-se numa posição estranha. Por um lado é através da literatura que transformamos a comunicação em arte, seja através da poesia seja da ficção. Sem a literatura não haveria histórias noutros suportes, do teatro aos videojogos, dos filmes às séries para televisão. Até uma passagem de modelos ou uma gala obedecem a um tema ficcional e são mediatizados por personagens. Por outro a literatura, e o romance em particular, é uma não existência em termos de comunicação de massas. O romance (e o conto) é uma mãe velha e pouco apresentável, mas que vai alimentando a prole.

Isto porque, na essência, todos os espetáculos são ficções e contêm os cinco elementos básicos que Aristóteles definiu na sua obra Poética, para a Tragédia, a origem do romance, há dois mil e quinhentos anos: “o enredo (mytos) — a alma da tragédia, com os nós e os desenlaces, peripécias e reconhecimentos; de caracteres (personagens) (ethé); pensamento (dianoia) e elocução (a forma, o estilo) (lexis), dentro de uma totalidade ou unidade.

A crítica, por muito desconstruída que se pretenda, não pode ignorar este elementos clássicos. Penso que não contribui para a chamada da literatura e do romance à ribalta fazer dele uma leitura cabalística, ou de tal forma heterodoxa que se desligue do básico essencial dos cinco pilares.

Os escritores são, por razões compreensíveis de afirmação da sua individualidade, maus críticos das obras alheias (e até das suas). Além de a crítica de um escritor a outro conter o risco da acusação de inveja. Não é, pois, qualquer crítica à obra de Lobo Antunes que me motiva, mas a estupefação (no sentido de pasmo e abismamento) que me provocou o texto de Norberto do Vale Cardoso publicado no JL de 25 de Setembro de 2019 sobre a sua obra, os seus romances.

Sobre a crítica literária Lobo Antunes disse em 2003, ao DN: “Idealmente, a missão da crítica seria ajudar a ler. Em teoria, o crítico será um leitor mais atento do que os outros. Não tem necessariamente que emitir juízos de valor.”

Parece sensato.

Agora coloco-me no lugar do romancista de quem um crítico diz, a propósito dos seus romances “O sema (palavra de emprego quase exclusivo por especialistas, para referir uma unidade mínima de um morfema) da margem remete — de um modo que em ALA é particularmente para recidivo — para um dos seus primeiros romances. Referimo-nos a Conhecimento do Inferno, no qual Maria Alzira Seixo destacou a importância da frase “o retângulo do espelho que bebia as flores como as margens do inferno o perfil aflito dos defuntos”, que fazem sobressair o processo da lateralização da informação e, por outro, a mescla dos elementos na poética antoniana”.

O que pensará de si o autor de uma obra assim retratada? Um romance cujo elemento de referencia ( de maior importância) é a frase? É evidente que os leitores têm todo o direito à interpretação das obras dos escritores. Pelo seu lado, pelo menos eu faço-o, os escritores refletem sobre os que os leitores leram no que escreveram. Aprendo com o que os leitores lêem nos meus romances e têm a delicadeza de me comunicar por qualquer meio. Sinto dificuldade em me colocar no lugar de quem visse os seus romances apreciados nos termos em que os de Lobo Antunes foram por este ilustre crítico.

Alguns dos meus romances, entre os doze que publiquei, abordam a relação de uma geração, aquela a que eu e Lobo Antunes pertencemos, com África. Nalguns surge como tema principal, noutros lateral, ou com alguma importância temática. Acontece o mesmo com alguns de Lobo Antunes.

Julgo possuir a partir das minhas leituras e pesquisas sobre as interpretações históricas, ou sobre ficções a propósito de África, um conhecimento mais vasto do que a maioria dos portugueses. Não se trata de pesporrência, mas de um facto. E esse facto leva-me a confessar que não consigo ver retratada nesta critica à obra de Lobo Antunes nenhuma interpretação de África, seja a do colonialismo inicial das ditas campanhas de pacificação, seja a da colonização da República, a do movimento descolonizador e da guerra colonial, seja, a das independências e a do retorno que se assemelhem sequer às do texto de Norberto do Vale Cardoso no JL.

“Não obstante o ‘domínio’ de África é de índole emocional, impressiva, e política!

Não conheço das porventura centenas obras sobre a África que li de forma mais ou menos profunda, escritas por portugueses, homens e mulheres da geração de Lobo Antunes, nenhuma que não seja eminentemente política. Umas salientando o absurdo — político — da guerra e da questão colonial, outras defendendo a guerra como a resposta adequada para assegurar o objetivo político da soberania sobre os territórios de África. Não há memória, eu não tenho essa memória, na história de uma guerra por motivos ontológicos, nem a sua representação literária. Nem na Bíblia! Leiam-se cartas disponíveis de combatentes da IGG e aerogramas da guerra colonial. Incluindo as de Lobo Antunes à mulher!

Daqui a minha estupefação enquanto ator e cronista desta guerra perante este texto. Não consigo, espero que os leitores de Lobo Antunes e ele próprio consigam, seguir o raciocínio de um leitor que escrevesse a propósito de um romance meu o que o autor do artigo do JL escreveu sobre “A Outra Margem:” “o vazio (da personagem) sentido após os acontecimentos em Angola começa por ser preenchido pela linguagem (sic) numa proliferação de referencias toponímicas (Tômbua, Marimba, Cassanje, Dalatando,, entre outros), e linguísticas (…) que localizam a experiência (a do vazio?) e impedem a mitigação da mesma.

Chega de citações. Não conheço nenhuma obra que retrate o vazio de quem quer que seja após os acontecimentos em Angola, e Lobo Antunes não é exceção.

Depois de ler esta crítica e sem qualquer ironia, reconheço ser muito difícil ganhar leitores para a leitura com tal promoção. Mas é apenas uma opinião pessoal. Tout va bien madame la marquise.

Carlos Matos Gomes
Carlos Matos Gomes

Written by Carlos Matos Gomes

Born 1946; retired military, historian

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