Um sistema corrompido desde o âmago
Na última página do jornal Público do dia 6 de Junho, o cartoonista Luís Afonso comentava a afirmação de Marcelo Rebelo de Sousa sobre a crise da direita portuguesa e do acrescento feito por Pinto Balsemão, de que a crise era do regime, colocando um dos seus “bonecos” a acrescentar e há uma crise climática, ao que o primeiro respondia: “Não sei é se estão as três relacionadas.”
É evidente que quer Marcelo, quer Balsemão sabem que as crises estão relacionadas. A crise da direita, portuguesa e europeia, é a crise da bulimia do capitalismo que o neoliberalismo representa e que rompeu um consenso de repartição da riqueza que na Europa foi representado pela social-democracia. O neoliberalismo protagonizado por Reagan e Tatcher é um sistema de arrasto da riqueza, concentrando-a num restrito número de felizardos. Nas sociedades do pós-guerra, o estado de bem estar criou hábitos de justiça que o neoliberalismo agora quer destruir. A direita está em crise porque nada mais tem a propor que a lei da selva do capitalismo sem anestesias nem disfarces que não sejam a caridadezinha.
Hoje publiquei um artigo no Correio do Ribatejo sobre o sistema assente na ignomínia que se tornou dominante e está em crise.
No século XIX o escritor Honroré Balzac escreveu uma frase que ficou célebre: “Por detrás de uma grande fortuna há um crime.”
O século XIX foi um período de incubação das grandes transformações que produziram o capitalismo, a civilização que se iria tornar dominante no século XX à custa de duas guerras mundiais quentes e de uma guerra fria. Essa civilização é e era a civilização das grandes fortunas, da emergência das burguesias industriais que agiram em matilha para o domínio global cujo paradigma é, e foi, o império britânico, da promoção da guerra como modo de concentração da riqueza. A civilização dos crimes atingiu o seu cume e está agora a apodrecer diante de nós e, pior, connosco.
Balzac teve a ousadia de afirmar que detrás de um capitalista está um criminoso. Lord Acton, um liberal inglês do século XIX, professor em Cambridge, acrescentou outra famosa frase: “O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente, de modo que os grandes homens são quase sempre homens maus.” Colocou duas questões essenciais para percebermos a corrupção do poder: “Quem detém o poder político?” e: “Quais são os poderes do Estado?”
A corrupção resulta da natureza do poder. Na base do poder encontramos sempre a lógica dos bandos de assaltantes e dos predadores: um grupo reúne-se à volta do pior dos seus elementos e estabelece uma estratégia para atacar a maioria dos que não dispõem de defesas. O bando organizado instala-se como poder político, arma exércitos e guardas, impõe tribunais, juízes, prisões, assembleias e leis. Nos casos mais benignos até promove eleições, depois de garantir que os resultados não questionam o seu poder.
As mais recentes notícias de acções contra corruptos em Portugal (e no Brasil, se quisermos uma droga mais dura) são exemplos práticos da corrupção do sistema: um grupo familiar, ou de interesses, reúne-se numa autarquia, num ministério, num governo, num regime e “saca” o tesouro possível constituído por contratos para serviços e obras públicas, autorizações, investimentos sem viabilidade e cedências de bens públicos a sócios privados, nacionais ou estrangeiros. Aqui em Portugal, nos tempos mais recentes, até as mais agressivas corporações de funcionários do Estado, de magistrados a enfermeiros e a professores, intitulando-se sindicatos para melhor iludirem as vítimas, entraram no festim da corrupção de valores e do saque.
O sistema de corrupção funciona com a lógica da peneira do pesquisador de oiro: reúne as pepitas que ficam à disposição de um restrito número de amigos sortudos. Para a maioria escorrem as escórias. A corrupção do meio ambiente é a última das ações criminosas do capitalismo. Poderá ser, de facto, a última.
A corrupção do capitalismo assenta na concentração do poder e da riqueza, logo, na promoção da desigualdade e da violência. Seja numa autarquia ou no governo de uma nação, seja num concurso para esgotos municipais, seja num contrato multimilionário para construir satélites, ou redes de planetárias de comunicações.
Nesta semana de caça aos corruptos paroquiais — ratos de esgoto municipal, digamos — li uma frase de uma cristalina inteligência. Curiosamente de um jogador de futebol chamado Bruno Fernandes, um jovem de aspeto humilde e sereno que disse qualquer coisa como: “Não há nenhum jogador que valha 100 milhões de euros”. Falava a propósito do mercado de transferências dos atores da indústria do futebol. Mas podia ter falado de comerciantes com redes de supermercados, de banqueiros, de especuladores da bolsa, de prostitutas de luxo, ou de inventores de gelo para as calotes polares gastas pelo aquecimento da corrupção do enriquecimento, que foi crismado de “desenvolvimento”.
As sábias palavras do jovem jogador podem e devem ser contrastadas com as notícias que a ex-mulher do dono da Amazon, uma empresa global de distribuição, iria doar a instituições de caridade parte dos 33 mil milhões de dólares (!!!) que recebeu com o divórcio, ou que um milionário americano decidiu — generosamente! — pagar uns milhões de dólares de bolsas de estudantes universitários que tinham entrado em falência por não poderem pagar os empréstimos exigidos pelas propinas das escolas privadas, ou que um outro, este o milionário espanhol dono da cadeia ZARA, também com a maior generosidade capitalista, iria doar uns milhões para tratamento do cancro.
Estas notícias não expõem boas acções e generosidades — elas expõem a corrupção sob a forma mais ignóbil e degradante: a da caridade como placebo para a miséria que causaram.
Estas notícias expõem também a falência do sistema do Estado capitalista que se corrompeu ao ponto de perder (deliberadamente) a sua função de redistribuidor da justiça e de promotor da segurança, progresso e bem-estar dos seus cidadãos, de lhes fornecer o acesso à saúde, à educação, ao ambiente saudável e sustentado, aos bens a que têm direito e que a corrupção no âmago do sistema permitiu que uns “sortudos” concentrassem em si e que lhes permiti a hipocrisia de apresentarem como beneméritos.
Nenhum homem ou mulher vale para a sociedade a pornográfica acumulação de riqueza aqui revelada! Nenhum homem ou mulher vale uma pirâmide do Egito, nem um Palácio de Versalhes, nem uma cidade proibida em Pequim, ou um Convento de Mafra. Nenhum homem ou mulher vale o suficiente para beber água a partir de torneiras de oiro ou cagar em sanitas de alabastro. Nenhuma civilização pode estar à mercê da caridade de acumuladores de fortunas para educar os seus cidadãos, ou tratá-los, ou alimentá-los. Essa acumulação é, na essência, e sem falsos moralismos, uma corrupção da forma de viver em sociedade.