Sindicalismo como reality show
A acção dos motoristas de combustíveis conduzidos pelo doutor Pardal Henriques causou, como acontece com quase todas as acções sociais, efeitos colaterais. Além de raramente as coisas serem o que parece que são, este caso dito da greve de uns auto intitulados motoristas de matérias perigosas fez emergir um tipo de análise televisiva, jornalística académica que reduz o sindicalismo a um serviço reivindicativo, e isto através de um discurso que equipara o papel dos sindicatos na sociedade ao de uma ONG. São abordagens aparentemente muito modernas e de grande impacto mediático, mas superficiais e em boa medida sem outro resultado que a promoção individual dos dirigentes e apoiantes. Um show off a propósito de um pardalão.
Tal como a questão dos refugiados no Mediterrâneo não se resolve, nem sequer se melhora a situação da corrente migratória com operações de resgate muito espectaculares de salvamento, com câmaras de televisão em movimentos rápidos — pese embora o dramatismo da situação dos infelizes utilizados como carne para televisão — , também as reivindicações de assalariados não são resolvidas com sessões contínuas de entrevistas, de entradas e saídas de cena, de jogadas e sound bites para títulos de jornais e abertura de telejornais.
O sindicalismo é (deve ser) mais do que a barganha que nos foi servida com um menu de salários e horas de condução, de salários por debaixo da mesa, acusações de militarização da sociedade e lamentos de e por vítimas da violência. Um sindicalismo de Feira da Ladra, ou da Vandoma foi o que os protagonistas e os comentadores mais utilizados nos painéis de coro sem decoro serviram aos portugueses. O primeiro efeito colateral foi o apoucamento de uma actividade política essencial na democracia e com relevo histórico: o sindicalismo.
O exaltado, mas oco, o discurso que pode ser designado por neobreirista, que se tornou dominante ao longo da semana, situou-nos a todos nos primórdios da luta sindical, quando os trabalhadores nascidos com a revolução industrial ainda não haviam ganho consciência de classe, nem os intelectuais haviam dado o seu contributo para situar o papel das organizações de trabalhadores no processo político. Levámos com doses cavalares de um discurso a-histórico. O Pardal Henriques é um astrolopithecus social, mas os seus adoradores acreditam que é um arcanjo defensor da classe operária!
Com surpresa vi alguns estudiosos dos movimentos sociais centraram as razões desta acção dos motoristas na reivindicação salarial e em melhores condições de trabalho! Até se levantou uma polémica entre uma federação de sindicatos e a professora Raquel Varela com horas de condução, de descanso para necessidades várias, tacógrafos, ajudas de custo, decretos-lei, descontos para a segurança social, senhas de refeição, perigosidade do gasóleo, matérias com esta elevação! Faltou uma nota sobre o sim ou o não ao bagacinho após a refeição! A estes despropósitos esgrimiram e a federação e a minha amiga académica argumentos de pormenor como se travassem um duelo de morte. O ridículo não mata mas debilita. Desasaram o sindicalismo, mas deve ter sido com boa intenção.
Também li e ouvi nas redes sociais, nos meios de comunicação e no discurso partidário argumentos sobre baixos salários. Eureka! Foi descoberta a pólvora! Tentando não sair muito do sério, estes argumentos pareceram-me excêntricos quanto ao essencial, o que não quer dizer que sejam falsos. Os motoristas dos camiões de combustíveis ganham pouco, acredito que sim. Logo estão cheios de razão para lutar, para deixaram os autotanques a descansar nas refinarias e os portugueses das classes médias sem pópó, os doentes sem ambulância e os agricultores com as searas de tomates e melão a apodrecer. Certamente que sim. Mas esse é o discurso desejado, promovido e aplaudido pelo sistema político e económico dominante. O sistema que vive e lucra com baixos salários, precariedade e atomização das organizações de trabalhadores, até chegar ao seu desarmamento, transformando-os em colaboradores. Este é o discurso que transforma sindicatos em colaboradores. É o discurso da desordem social do neoliberalismo. Com 50 euritos, segundo o motorista Francisco São Bento há pouco nas TV’s, presidente em nome do sindicato do cunhado Pardal Henriques, a coisa acerta-se! Uma parelha de respeito e que tem sido tomada a sério!
Também apareceu na liça o argumento dos lucros da GALP. Tendo a GALP lucros pode aumentar os motoristas. É o chamado argumento do tiro no pé dos trabalhadores. Na tropa chamava-se este o quarto argumento. Havia o bom, o mau, o do estado-maior e o quarto,aquele nem lembrava ao estado-maior! E quando as empresas dão prejuízo os sindicatos e os seus intelectuais orgânicos aceitam a redução de salários? É que o que é para o bom é para o mau. Ou há moral… ou a lógica é uma batata. Os maquinistas da CP, os bancários, os jogadores de futebol do Sporting que ponham as barbas de molho.
O discurso dominante de apoio a esta acção dos ditos motoristas de autotanques de combustível revela que o neoliberalismo venceu o sindicalismo, que o individualismo e o egoísmo ganharam as mentes dos ideólogos do sistema. O doutor Pardal Henriques (devia ser esse o seu objectivo) e os intelectuais/comentadores seus apoiantes assumiram-se como apóstolos da lei da selva no mundo do trabalho. E mandaram a lógica a banhos de águas frias e com muito vento.