Carlos Matos Gomes
5 min readJan 24, 2020

Salvadores caseiros e a as teorias da corrupção

O meu primeiro embate com a fé — a fé em Deus e a fé nos homens — deu-se quando me perguntei e perguntei a quem me rodeava porque me queriam salvar. Havia um salvador divino nas igrejas, representado por um crucificado (o que não era um bom indício) e um salvador terreno nas escolas, representado pelo doutor Salazar, com trajes de lente universitário (o que para um cábula também não era animador). Eu não sentia necessidade de ser salvo, não me sentia em perigo e, quando me via em apuros, sabia que nenhuma daquelas figuras me viria salvar.

A corte com os meus putativos salvadores ocorreu entre o final da escola primária, de que tinha sido expulso na 4ª classe e a comunhão solene que antecedeu a minha separação da igreja católica. Nunca mais reatei a fé nos salvadores. Mas tenho-os encontrado ao longo da história em versões populares e eruditas e aprendi a reconhecê-los.

Também desde cedo me repugnou a ideia de um pecado original, que é o argumento base de que se servem os candidatos a salvador para nos deixarmos salvar e para eles obterem sucesso na vida. Para se salvarem, enfim.

O salvador é uma espécie infestante da História Universal. No essencial, o salvador é o escuteiro que se apresenta para ajudar a velhinha a atravessar a rua e a atira para debaixo dos carros. E depois faz a boa ação de chamar os bombeiros. É um bombeiro incendiário! Quando um salvador me surge a propor salvar-me penso: estás a querer atirar-me para a fogueira para ficares bem visto!

É assim que vejo os salvadores que me têm aparecido ao longo dos tempos: homens e mulheres que me passam rasteiras.

Sinto pelos salvadores a mesma repulsa que muitas pessoas sentem pelas baratas, uma repugnância cientificamente designada de catsaridafobia. Mas eu respeito as baratas, elas salvam-se dos piores cataclismos sem salvadores. Do que eu tenho catasridafobia é dos salvadores da humanidade em todas as escalas, mundiais ou nacionais, regionais, leigos ou religiosos, civis ou militares, homens e mulheres.

Ao tentar escapar aos salvadores caí há uns tempos na soteriologia, o nome esotérico dado à doutrina da salvação. Uma área pouco conhecida da teologia mas muito praticada por demagogos políticos e religiosos. O que é soteriologia? É a área da demagogia (os seus apóstolos falam de uma teologia) que estuda a salvação em todos os seus aspetos. Como livrar os homens do pecado e como lhe dar um destino final. Isto é, como transformar a espécie humana num rebanho, uma espécie de onde sejam erradicados os maus, os predadores, os que matam, os que mordem, os que roubam, os que violam, os que vivem à custa dos outros. Um salvador é um paladino de outra espécie de seres que não a que existe, uma espécie de seres que se deixam salvar e esfolar até pagam para os convencerem da salvação enquanto lhes tiram a pele. É assim que os salvadores nos querem.

A soteriologia, isto é a crença na salvação, é uma constante da história. Em boa verdade é a história da humanidade. Acreditar num salvador e que o salvador nos livra do mal e dos maus é o beabá do domínio de uns humanos sobre os outros. O mal são os outros. O salvador é contra os outros, contra os de outros grupos, contra os que professam outra religião, ou têm outra cultura, contra os que se opõem a ser salvos.

O sucesso da soteriologia, isto é, da demagogia em todas as suas alíneas e classes, assenta na venda de moral em doses convenientes. Há um Mal e o demagogo propõe o Bem. A receita é irresistível, infalível e milenar.

Como reconhecer um salvador recorrendo à soteriologia? Desde judeus a gregos que os salvadores falam no “yasha”, que significa libertar daquilo que prende. E o que prende e vende é a corrupção. Um salvador fala antes de tudo de corrupção dando-lhe o sentido que lhe convém no momento. Se estiver num meio de costumes conservadores, falará de corrupção de costumes, de depravação, de perversão de valores morais, de homossexuais, de aborto, de droga; se quiser vender a salvação a comerciantes estabelecidos referirá a modificação das características originais de algum produto, de adulteração, de contrafação, de ciganos, se a audiência for de jornalistas no ativo e de políticos na oposição clamará contra o aliciamento de funcionários ou de políticos no poder, da oferta de bens ou de dinheiro, de suborno. Numa assembleia religiosa o salvador falará da decomposição da matéria orgânica do invólucro que sustenta a alma, de putrefação da fé…

A pergunta então será: não vale a pena lutar contra a corrupção? Não existe diferença entre o Bem e o Mal?

Claro que vale a pena lutar contra a corrupção. Claro que existe o Bem e o Mal. A questão é que a luta contra a corrupção é uma tarefa da sociedade, resulta do entendimento da sociedade de que a corrupção tem como pilar a injustiça. E o que acontece é os salvadores que invocam a corrupção como inimigo da salvação nunca lutarem pela justiça, pela igualdade de direitos, pelo bem de todos e não de alguns. Os salvadores são, de ordinário, os mais corruptos, os mais hábeis, os mais egoístas. Alguns conseguem ser glorificados: são os caça marajás, os das mãos limpas, os lava jato…

A dita soteriologia, a doutrina da salvação é essencialmente corrupta. O salvador que aparece na praça, nos palcos dos templos, nesses púlpitos modernos que são os ecrãs de televisão e computador a bramar contra a corrupção em vez de salvação, isto é de justiça real e não num paraíso virtual pretendem manter as injustiças fundamentais resultantes da desigualdade, da fé num ato individual do salvador: votem em mim que eu salvo-vos, em vez de proporem a ação coletiva e consciente. Apelam aos instintos primários em vez de convocarem a razão.

A pobreza, ou a miséria não acaba com um salvador a gritar contra os dirigentes que se aproveitam das riquezas, a corrupção diminuiria se os salvadores contribuíssem para a criação de uma opinião pública e para a ação cívica dos elementos da sociedade. Mas isso seria negar o papel de salvador ao salvador. Seria exigir o suicídio do salvador, o seu desaparecimento dos ecrãs, das colunas de opinião, do reconhecimento público, o fim dos dízimos.

Nenhum salvador quer perder o estatuto. E também muito poucos se têm sacrificado para nos salvar. E os que o fizeram, se tivessem sobrevivido ao martírio, acredito que sofreriam uma desilusão com os resultados.

Resta-nos, para nos salvarmos, livrar-nos dos salvadores e tomar a luta contra a corrupção nas nossas mãos, construindo um sociedade mais justa, com uma justiça menos dependente das conjunturas do poder, mais ética e menos formal, mais próxima da justiça do que dos Códigos e das normas processuais.

Biblicamente a salvação é uma obra de Deus. Deixemo-lo com esse encargo e dispensamos os salvadores caseiros, masculinos, femininos e transgéneros.

Também não é por muito madrugar que amanhece mais cedo: isto é, não é por muito falar de corrupção que ela diminui.

Por fim, não foi por andarem pregadores com um sino a gritar contra a lepra que acabaram os leprosos!

Carlos Matos Gomes
Carlos Matos Gomes

Written by Carlos Matos Gomes

Born 1946; retired military, historian

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