Robert P. Kennedy apoia Trump

Carlos Matos Gomes
5 min readAug 24, 2024

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Os regimes que ainda se reclamam de democratas são Estados-mercado. Tudo se compra e vende. Os cidadãos estão fora do negócio, são o negócio, tal como leitões que são assados na Bairrada não estão fora do negócio da restauração, são o negócio, assim como as vacas, vitelas, bois e bezerros que servem para fazer hambúrgueres são o negócio das cadeias de fast food.

O que está em jogo nas eleições nos Estados Unidos é uma disputa entre oligarquias. Não entre princípios Democratas e Republicanos. O regime político dos Estados Unidos é desde a sua fundação um regime republicano, em que os cidadãos elegem representes para o poder legislativo, executivo e judicial e não um regime democrata em que o poder resulta da sociedade, como um todo, daí que seja possível, como foi com Al Gore e Hillary Clinton ter mais votos e perder a eleição. O sistema republicano dos Estados Unidos foi desde o início capturado por corporações de interesses e estas pelos seus elementos vitoriosos, os multimilionários, que através de doações pagam as eleições dos que vão para a arena combater pelas suas cores, os jóqueis que montam os seus cavalos. Os representantes que se apresentam a eleições ou são muito ricos, ou são sponsorizados por muito ricos. Não há outra via.

A surpresa de um Kennedy, Robert F. Kennedy, filho de Robert Kennedy e sobrinho de John Kennedy ter anunciado o apoio a Trump é muito mediática, mas está dentro da normalidade do sistema. Essa surpresa, uma construção apelativa para as redes sociais, silencia muito passado. A ideia dos Kennedy liberais e democratas é uma construção. O fundador da dinastia, Joseph P. Kennedy, fez a primeira fortuna como investidor no mercado de ações, passou os lucros para o investimento no imobiliário. Durante a Primeira Guerra Mundial, foi administrador de um grande estaleiro e conheceu Franklin D. Roosevelt, que era secretário adjunto da Marinha. Na década de 1920, Kennedy obteve enormes lucros reorganizando e refinanciando vários estúdios de Hollywood; por fim ainda aumentou a fortuna com direitos de distribuição de uísque escocês e tráfico nos tempos da lei seca, de onde vem a ligação à Mafia, que dominava este negócio. Foi o primeiro presidente da Comissão de Valores Mobiliários (SEC), mais tarde dirigiu a Comissão Marítima, que mediava os fabulosos negócios da construção naval para a marinha americana. Roosevelt nomeou Kennedy como embaixador dos Estados Unidos no Reino Unido e mal chegado fez um devastador discurso às elites inglesas no Clube Pilgrim, criticando a democracia inglesa e dizendo aos estupefactos aristocratas que geriam os negócios e a política que era do interesse americano manter-se neutral em qualquer conflito em que a Grã-Bretanha se envolvesse com a Alemanha e que os Estados Unidos olhavam agora para a Grã-Bretanha olhos nos olhos, de igual para igual o que nunca ocorrera no passado. Disse aos ingleses que não via com bons olhos que um regime anticomunista e capitalista como era o britânico combatesse um regime anticomunista como era o nazi de Hitler. Os inimigos dos nossos inimigos são nossos amigos. Pragmático, nada de valores democráticos, defesa da liberdade e a tretas do costume para angariar votos e voluntários para a tropa, a deles. Os Kennedy são democratas porque calhou o pai ser apoiado por Roosevelt, um político democrata, para os seus negócios

Os Kennedy representam nos Estados Unidos um típico percurso de emigrantes de sucesso, que um autor classificou de “De Corsário à Máfia e ao Poder”. O percurso de Trump é o mesmo. Este Kennedy que se alia a Trump causa estranheza porque estraga a imagem das famílias “aristocratizadas” da costa Leste dos Estados Unidos aparecendo como auxiliar de uma figura grotesca como é Trump. Mas o pai de Trump seguiu o mesmo percurso de Joseph Kennedy, incluindo a passagem por negócios de duvidosa limpeza, no caso dele o dos cabarés e da prostituição.

A aliança de Robert Kennedy com Trump parece contra natura, mas não é. É certamente racional e também uma demonstração de autonomia de um eterno jovem — os Kennedy são sempre jovens — que chegado aos setenta anos diz o que não é politicamente correto. Provoca a estupefação do tipo de um irmão do rei Carlos de Inglaterra a candidatar-se pelo Partido Republicano da Irlanda. Ou a causou o casamento de Filipe de Bourbon e Grécia com uma jornalista plebeia e vivaça.

A decisão de Roberto Kennedy lembrou-me uma conversa com o vendedor de armas de maior sucesso em Portugal nos anos 70 e oitenta, que perante as minhas dúvidas sobre o equipamento que estava a propor me garantiu: “a nossa empresa já ganhou suficiente dinheiro para ser séria”. O neto de Joseph P. Kennedy pode dizer o mesmo, a família já ganhou o suficiente para um deles dizer e fazer o que lhe vai na alma. Pode ser ecologista, antivacinas, pacifista. A sua acompanhante como vice presidente, Nicole Sahanhan, jovem multimilionária de 38 anos, com uma formação de base em Direito, que começou por ser casada com um investidor e executivo financeiro, que ao fim de umas semanas iniciou um affair com um co-fundador da Google, de quem se divorciou por ter tido um alegado affair com Elon Musk, o da Tesla e da antifa Twitter, afora X e da Starlink (também apoiante de Trump), ainda teve uma relação com um milionário ligado ao negócio das bitcoin. Com as compensações milionárias dos divórcios tem uma fortuna avaliada em mais de mil milhões de dólares. Sendo a mais rica dos candidatos a vice-presidente, uma fortuna que lhe tem permitido envolver-se em atividades ecologistas através de uma fundação a Bio-Echo.

Este par — o ticket — é critico da estratégia dos Estados Unidos na Ucrânia, e representa cerca de 8% das intenções de voto.

O que está em jogo nesta transferência de um Kennedy para o republicanismo tem a ver com interesses da fação dos oligarcas americanos mais interessados no mercado global interno do que no mercado global planetário, que os oligarcas democratas tradicionalmente defendem.

Em termos de futebol, do pouco que sei das conversas com especialistas, uma equipa pode ser organizada (eles dizem montada — que é a linguagem do IKEA) a partir da defesa, ou a partir do ataque. Há treinadores que organizam as suas equipas a partir da solidez da defesa para só depois desta garantida irem para o ataque, outros preferem o contrário, ser “pressionantes” e agressivos e valorizarem o ataque.

O que está em jogo nas eleições nos Estados Unidos são estas duas conceções de organizar a estratégia da equipa. A figura grotesca de Trump não favorece a oligarquia do mercado interno, mas ele faz parte dela e conseguiu metê-la no bolso, fazê-la assoar à sua gravata e comer as suas bravatas.

Sendo da geração dos babyboomers, não gosto de ver um Kennedy metido com um “trampa”. Já agora, trampa era a designação, com raiz na corruptela de trump — peido, que a minha avó materna, que fora emigrante na Califórnia, onde a minha mãe nasceu, dava aos vagabundos sujos, agressivos, que apareciam no rancho no Vale de São Joaquim, se expressavam por grunhidos e nem sequer agradeciam o que lhes davam.

Mas esta transferência, ou aderência é negócio como habitual e vai determinar os próximos tempos no planeta.

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