Carlos Matos Gomes
3 min readJan 22, 2021

Responsabilidade política — o que é?

Há anos caiu uma ponte na localidade de Entre-os-rios. Um autocarro e os seus ocupantes morreram na queda e afogados. O ministro das Obras Públicas demitiu-se. Foi muito aplaudido e tem sido apresentado como exemplo a seguir. Mais perto, ocorreu um roubo de material militar num ignoto paiol em Tancos. Descobre-se um nebuloso processo de luta entre polícias, PJ e PJM com a Procuradora-geral da República pelo meio. Resultado da luta subterrânea, demite-se o ministro da Defesa, para assumir responsabilidades políticas. Há dias, em pleno período de restrições de convívios devido à pandemia, um grupo de tarados espanhóis aluga a Quinta da Torrebela para uma orgia de matança e chacina de animais, exibe a sua animalidade e desrespeito por normas de decência no comportamento humano. O que é exigido na comunicação social? Punição dos chacinadores? Do proprietário que alugou o espaço murado da chacina? De quem não fiscalizou e não detetou a reunião (não eram ciganos, claro) nem sequer a retirada das mais de 500 carcaças (100 toneladas de carne) dos animais? Do presidente da autarquia? Das autoridades policiais que não deram por nada de anormal, nem da entrada de tão elevado número de armas, nem dos ruídos dos tiros, apesar de serem audíveis à distância, nem do inusitado número de viaturas? Não! O que a comunicação social incita é à exigência de responsabilidade política! Que um ministro se demita!

Os políticos em geral têm grandes culpas na confusão entre política e administração do Estado, que se traduz em populismo de afetos e de proximidade e ineficácia. Um ministro é um político ou é um funcionário da administração pública?

A invocação da “responsabilidade política” é, a maioria das vezes, pura demagogia, arma de luta partidária oportunista e o atual presidente da República, jurista e calejado analista político, é um praticante usual desta confusão deliberada.

Qual é o “universo” da política? Maquiavel, fonte da moderna teoria política, em Discorsi escreveu: “Política é o exercício do poder de acordo com as exigências e circunstâncias determinadas. O político tem o poder de determinar ações relacionadas com os interesses, objetivos e fins dos agentes (funcionários)”. O político, como se lê, determina ações aos agentes, superintende, avalia, exige em nome dos cidadãos. Não é, pois, um agente executor.

É a administração pública o agente de execução das ações determinadas pelo poder político, quer através dos serviços associados às funções de soberania do Estado, quer aos que asseguram o funcionamento de atividades indispensáveis à vida e ao bem-estar da sociedade. Serviços e empresas que dispõem de organização própria, com fins e hierarquias estabelecidas, com autonomia a cujos dirigentes os políticos podem e devem dizer como em «Os Lusíadas»: «nunca louvarei o capitão que diga: Não cuidei» a quem devem exigir responsabilidades por não cuidarem, sendo que a falta de meios nunca é uma justificação para a desresponsabilização, mas sim condição para um acréscimo de exigência e de rigor.

Ora, a primeira reação quando ocorre uma falha é acusar o político e não o “capitão”(o funcionário, ou o dirigente) que não cuidou. Mas, revelador da perversidade da acusação e da sua falta de seriedade, a exigência de responsabilidade política surge apenas quando os desastres são tragédias que não atingem o núcleo do poder. Os manipuladores da opinião nunca exigiram responsabilidades políticas aos responsáveis pelos maiores desastres financeiros em Portugal: o do BPN, do BPP, do BES, nem pela venda de setores estratégicos como os da distribuição de energia, de transportes e comunicações a estados estrangeiros!

Em princípio, quando a opinião pública é atiçada contra os políticos por um qualquer desastre, por muito doloroso e espetacular que seja, está a ser alvo de uma operação de desvio da atenção para um crime maior no coração do poder, que convém passar desapercebido, e a administração pública está ser desresponsabilizada. Quando aceitamos esta manobra de inversão de responsabilidade estamos todos a ser coniventes com a grande e verdadeira corrupção, com má gestão do património comum e com a má qualidade dos serviços a que recorremos.

Carlos de Matos Gomes

Carlos Matos Gomes
Carlos Matos Gomes

Written by Carlos Matos Gomes

Born 1946; retired military, historian

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