Carlos Matos Gomes
5 min readOct 5, 2019

Perplexidades — Episódio Três

Eu tenho o meu mundo. As centrais de comunicação que me vendem o mundo têm outro. Mais alguns exemplos das minhas perplexidades, em véspera de mais umas normais eleições:

No meu mundo as Parcerias Publico Privadas (PPP) são um negócio da China (no sentido de lucro fácil e garantido) para os privados e ruinosos para o público. No mundo da comunicação social, e do pensamento dominante, as PPP são um negócio respeitável e os seus negociadores quer por parte do público quer do privado gente séria. As SCUT, as tais vias sem custos para o utilizador, as PPP da saúde, a PPP das lusopontes são belos exemplos. Uma BRISA de ar fresco! Até os submarinos andam por aí debaixo de água em PPP, ou leasing, assim como os helicópteros Merlin. Genialidades patrióticas de Portas, ministro de Estado.

No meu mundo as concessões de serviços públicos essenciais são atentados à soberania dos cidadãos, alienação de bens comuns a começar pelo primeiro, o direito à segurança. Concessionar, isto é, passar para o domínio de uma entidade pública estrangeira, no caso chinesa a produção e distribuição de energia (EDP) é perigoso e criminoso. Até já se vendem barragens — se com ou sem os peixes das albufeiras será caso para negociar. O mesmo para a alienação do controlo de aeroportos a uma empresa francesa (ANA –Da Vinci), o mesmo para a entrega à gestão privada estrangeira do principal porto abastecedor de combustíveis (Sines), integrado numa administração com os portos do Algarve, julgo que a uma empresa de Singapura. Na comunicação social estas são áreas de negócio de que toda a sociedade beneficia. Até ao dia do desastre.

No meu mundo os incêndios são um negócio que faz movimentar empresas de aluguer de meios aéreos, dá emprego a milhares de pessoas geralmente sérias como bombeiros e auxiliares, mas está na base de negócios de madeiras e afins. Na comunicação social os incêndios são uma incompetência do governo. Motivo de calúnia. As florestas ardem por incompetência e falta de meios e não porque alimentam um dos mais rentáveis negócios no país. Ardem porque o primeiro ministro, apesar de presente, de agulheta, ou de megafone, estava de férias, o chefe dos bombeiros tomou uma decisão que não foi a melhor, os rádios funcionaram com dificuldade. A culpa do incêndio — um fenómeno sem autor — foi de uma entidade misteriosa, o SIRESP, que devia ser uma Nossa Senhora de Fátima e não milagrou. Eram necessários mais meios de “combate”. Que rendem lucros. Da investigação dos causadores e dos beneficiários dos incêndios é que não convém falar.

Causa-me perplexidade não existir, nem estar nas prioridades, uma linha de TGV a unir as duas capitais ibéricas, Lisboa a Madrid, e do Porto a Vigo, já agora. É que a Espanha é a principal parceira política e económica de Portugal. Os 3 principais rios que desaguam em Portugal nascem em Espanha. O maior fluxo turístico, é entre Portugal e a Espanha. O transporte de massas do futuro próximo será o comboio. Mas o TGV saiu da agenda.

Não sei se é perplexidade se ingenuidade. Mas parece não causar espanto, nem perturbação cívica, o olhar que o Conselho das Ordens Honoríficas e o aparelho judicial — Tribunais, Ministério Público e Polícia Judiciária têm sobre um mesmo conjunto de cidadãos. O Conselho das Ordens condecora com rapidez os mesmos cidadãos que o aparelho judicial acusa na comunicação social. Os agraciados pelo Conselho das Ordens recebem as veneras em tempo e com pompa. Os acusados do aparelho judicial andam em bolandas tempos infindos com as suas acusações às costas, com os labéus e os São Benitos do tempo da Santa Inquisição, sem que o aparelho judicial — uma vaca sagrada — se pronuncie, nem se explique. Exceto para o caso de Vara, oficialmente o único político corrupto em Portugal! Em conclusão, é muito mais fácil e rápido ser comendador ou grande oficial em Portugal do que julgado e esse facto não nos causa perplexidade. Há vacas sagradas em Portugal e a comunicação social apascenta-as. O condestável Nuno Álvares Pereira praticou os atos no século catorze e foi santificado no século vinte. Não ofenda a justiça dos homens a justiça da Igreja, apressando-se! Uma perplexidade religiosa.

Por fim, por agora, causa-me perplexidade a proposta de criação de um museu a Salazar. Entre outras razões porque já existem vários. Que me lembre: Um no Aljube. Outro em Caxias. Outro em Peniche. De alguns outros locais, deixaram os atuais promotores e apoiantes passar a oportunidade de reclamar (a memória é seletiva, claro). Caso da sede da PIDE, na António Maria Cardoso, substituída por um condomínio de luxo. No Porto, na Rua do Heroísmo, encontra-se hoje um museu militar. O Tarrafal em Cabo Verde, a prisão da Machava e a Chefina, em Moçambique, o Campo de São Nicolau em Angola estão fora de possibilidade, devido às execradas independências coloniais da responsabilidade dos opositores do senhor doutor! Mas restam arquivos, podiam ir para Santa Comba. Querem-nos lá? Os mais de 4 milhões de emigrados pelo mundo também são um museu vivo do bem estar e do desenvolvimento do salazarismo. As malas de cartão e uma reconstituição de um bidonville estão previstos? Deviam ser exaltados. E a desertificação do Alentejo com a campanha do trigo, já agora. E os 40% de analfabetos que mais coisa e menos coisa existiram até à década de setenta. E os pés descalços de crianças e adultos na segunda metade do século XX, na Europa! E o aeroporto de Lisboa e o Porto, onde desembarcaram os colonos — 300 mil? — resultantes de uma descolonização no mínimo tão exemplar como exemplar teria sido a colonização decidida por Salazar em 1961, com a guerra. Também podem constar do museu o apoio ao golpe de Franco e à guerra civil que o nanico galego de Ferrol promoveu, com o cortejo de horrores que resultaram desse golpe. Um uniforme do generalíssimo estará previsto? O apoio ao nazismo e ao fascismo. Sempre do lado errado da História e dos valores essenciais da humanidade. Por fim, o grande museu do salazarismo, a grande parede-memorial do Forte do Bom Sucesso com a identificação dos mortos na guerra colonial e na Índia, fruto das decisões de Salazar contra a História e a razão (não era essa a intenção dos promotores, mas o tiro saiu pela culatra). Há ainda um outro museu fruto do salazarismo, neste caso um museu à dignidade dos que sofreram a cegueira de Salazar, a sede da Associação dos Deficientes das Forças Armadas. Que diabo, com tantos museus a Salazar, o que resta? As botas? Que se erga então em Santa Comba o museu do botas!

Carlos Matos Gomes
Carlos Matos Gomes

Written by Carlos Matos Gomes

Born 1946; retired military, historian

No responses yet