Paris 2024: Mais uns Jogos Olímpicos do Fim de uma Era

Carlos Matos Gomes
5 min readJul 31, 2024

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Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 são um acontecimento típico dos tempos que antecipam a conhecida “armadilha de Tucídides” que os dirigentes europeus deviam conhecer e lhes devia servir de orientação, se fossem cultos e sensatos, e se a História não fosse uma prova de que em situações de crise a humanidade escolhe ser dirigida pelos mais grotescos dos seus exemplares, os que fecham os olhos e investem contra o que lhes surge entre a sua ambição e a parede onde vêm o inimigo, mais uma prova de que a racionalidade é um bem descartável, sempre à mercê da arrogância e da ambição.

A estudada armadilha de Tucidides (quem raio seria o Tucidides, devem perguntar-se os warmongers em Washington e em Bruxelas, porque certamente em Moscovo e em Pequim sabem e têm demonstrado que o sabem?) refere a inevitabilidade de um conflito quando uma potência em ascensão ameaça substituir uma potência dominante. Como hoje acontece entre a ascensão da China e da Rússia, agregadores dos BRICS, e a decadência dos Estados Unidos e do que estes designaram como o Ocidente Global, que são os Estados Unidos, os satélites europeus e os aliados do Pacífico, a Austrália, a Nova Zelândia, o Japão e a Coreia.

A Primeira Grande Guerra começou dois meses antes do conflito armado, no maior evento desportivo da altura, a Regata de Kiel, que reunia na cidade alemã os maiores e melhores iates do mundo, o que quer dizer da Europa e que nesse ano o Kaiser Guilherme queria aproveitar para celebrar o novo poder naval alemão e assim desafiar a hegemonia naval da Inglaterra, fazendo essa demonstração sob a capa de uma grande festa desportiva. Nada revela tão bem a insensatez e a insensibilidade dos europeus para a grande guerra que estava prestes a envolvê-los no que começou por ser uma disputa germano-britânica do que a regata de Kiel na época do assassinato em Sarajevo do arquiduque da Áustria .

O correspondente americano Frederic Wile escreveu mais tarde sobre o evento: “Por aquela circunstância oculta que determina com deleite diabólico a ironia do destino, foi ordenado que Kiel, 1914, fosse a ocasião de uma espetacular festa de amor anglo-germânica, com uma esquadra de navios britânicos ancorados no meio da pacífica Armada Alemã como um sinal para todo o mundo do calor não explosivo das ‘relações’ anglo-germânicas.” A semana, que começou em 24 de junho, não mostrou nenhum sinal de tensão entre as frotas britânica e alemã. . . o Kaiser embarcou num navio de guerra britânico vestindo um uniforme de almirante britânico, uma honra que veio de um título dado a ele por sua avó, a Rainha Vitória. Marinheiros das duas nações se entretiveram com bebidas, danças, boxe e uma “noite de sábado turbulenta que se fundiu com o domingo de Sarajevo”.

O assassinato lançou um ar temporário de “tristeza e presságio” sobre as celebrações em Kiel, mas não diminuiu a amizade entre os ingleses e os alemães. Homens em ambas as marinhas falaram entusiasticamente sobre rumores de que a Marinha Real logo retribuiria a hospitalidade dos novos amigos alemães. Um observador com conexões próximas em ambos os países observou [mais tarde], “Estou certo de que nenhuma alma de nós se considerou capaz de imaginar que, por causa daquele crime remoto, a Grã-Bretanha e a Alemanha estariam em guerra cinco semanas depois.”

Os jogos Olímpicos de Paris têm semelhanças com a regata de Kiel, até com o desfile dos barcos no rio Sena, que replica a dos iates no canal de Kiel — são uma festa de aparências que os dias de chuva da abertura prenunciam como a tempestade que se aproxima.

Os Jogos Olímpicos de Berlim, de 1936 prenunciaram o mesmo fenómeno de uma guerra após o espetáculo de convívio à volta do desporto.

Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 seguem o mesmo guião, agora com ainda mais evidentes sinais de que marcam o final de uma época e com claros sinais de jogo de guerra.

O espetáculo montado na cidade luz que reúne os melhores atores mundiais, os mais profissionais, as vedetas transformadas em ídolos na encenação, no canto, na dança na representação, na performance desportiva e tecnológica é uma afirmação de superioridade do Ocidente Global, que através dele desafia a Rússia, com quem está em competição, negando-lhe a participação. Não houve coragem de negar a entrada à China. Os BRICS fazem figura de amante a conquistar. A China entendeu que ainda não era tempo de separar águas. Tem tempo. O Ocidente e a Europa em particular e a pequena França do pequeno Macron demonstraram não ter a grandeza, ou sequer a dignidade de afirmar uma autonomia, convidando a Rússia, mas acolhendo com palmas Israel, o grande peão dos Estados Unidos para dominar o Médio Oriente, um espaço de interesse estratégico vital para a Europa. A sujeição da Europa aos Estados Unidos é absoluta. Já decidiu obedecer aumentando as suas despesas militares adquirindo material americano. A única sombra que paira, o imponderável que retirou o senil imperador do trono e abriu a hipótese ao regresso do imperador incendiário. Os Estados Unidos estão em convulsão interna e não podem aproveitar este momento único de afirmação de poder que lhes foi preparado em Paris.

O grande aparelho de manipulação universal através das redes de comunicação encarrega-se de mostrar as tribunas presidenciais e as habilidades dos artistas, os seus pequenos e grandes dramas. Morre-se na Ucrânia numa guerra por procuração dos organizadores dos Jogos, morre-se na Palestina, no Líbano às ordens do Império, morre-se no Sudão, em África, mas corre-se, salta-se, dança-se, nada-se, rema-se, boxeia-se, esgrime-se, skata-se, joga-se com todas as bolas, sobre relva, tartan e pó de tijolo, discute-se o sexo dos atletas, com exibição de genitais onde devia estar uma outra peça da natureza, mas, mais do que a guerra e a paz interessa o politicamente correto.

Perante este espetáculo de Coliseu Romano, onde se discute com arreganho se uma das cenas da abertura é a Ultima ceia do Novo testamento da Bíblia ou uma representação de uma orgia de deuses pagãos, a pergunta dos impotentes que somos nós, os arredados de todas as decisões nas democracias que nos são apresentadas como o fim da História, porque nada mais os povos têm a dizer contra o poder das oligarquias, devíamos, se nos fosse permitido, perguntar quando serão as novas Olimpíadas, ou se haverá novas Olimpíadas. Mas, já que nada aprendemos com a Regata de Kiel, nem com Berlim 1936, porque haveremos de aprender com Paris 2024? As bestas que nos governam são da mesma estirpe e os governados são a mesma manada que irá servir de carne para canhão.

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Carlos Matos Gomes
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Written by Carlos Matos Gomes

Born 1946; retired military, historian

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