Os sacrificados do Ano Novo
As sociedades de consumo ocidentais herdaram a tradição dos sacrifícios rituais das culturas que estão na sua origem e transformaram-nos em negócio. Aqui em Portugal, no Natal, os sacrificados são o peru e o bacalhau, nalguns locais, o polvo, pela Páscoa calha a vez ao cordeiro, pelo Verão é a sardinha a subir ao cadafalso da grelha, pelo Ano Novo calha a vez ao marisco.
O marisco é a vítima mais recente e também a mais emblemática da nova sociedade portuguesa e da sua classe média. O marisco está associado a uma ideia de riqueza e bem-estar que a classe média gosta de exibir para se parecer com os ricos, com os da alta. Uma mariscada! E os da alta, isto é, os donos disto tudo satisfizeram esse legítimo desejo de exibição e de subida na vida com o marisco de viveiro. Colocaram diante dos olhos sôfregos dos remediados em peregrinação aos hipermercados, que são as suas catedrais, balcões frigoríficos de camarões e sapateiras fabricados a farinha e sujeitos a congelação! Está fabricada uma nova tradição. Serve-se com umas cervejolas.
A tradição estendeu-se até aos sacrificados humanos. Mesmo os sem-abrigo foram incluídos. Ou aderiram. No romance que publiquei este ano que finda — Que fazer contigo, pá? — lembrei-me deles. Aqui vai um excerto em honra dos ValedeZebro que irão apanhar os restos das mariscadas.
“O Valedezebro falava enquanto preparava as instalações para passar a noite com cartões e cobertores. Sentou-se e abriu um saco de supermercado. Rúben manteve-se com o seu pendurado nas mãos. Sentia curiosidade em ver o que comia o Valedezebro. O antigo fuzileiro tirou uma santola com recheio e ofereceu-lhe uma perna. À sua frente, num jornal aberto colocou camarões cozidos, ameijoas, búzios. Resmungou: «Hoje não veio lagosta! É a crise!» Recolhia os restos das marisqueiras. Marisco fora de prazo, mas não o intoxicava:
- Sou marinheiro, dou-me bem com o que vem do mar. Com a fome é que me dou mal. Mas devo ser o único sem-abrigo de Lisboa que janta uma mariscada todos os dias. Às vezes já me enjoa. Só é uma pena o espumante não ter prazo de validade para deitarem fora as garrafas. Gosto de espumante com marisco. Gosto mais com cerveja, mas com espumante também vai muito bem e provoca melhor arrotar, sai mais pelo nariz, faz cócegas. Marisco com cerveja lembra-me África. Fiz uma comissão na Guiné. Lá era mais ostras. Enjoei as ostras. Aquilo da guerra em África tinha a sua graça, mas os pretos davam-nos tiros por alguma razão. E não sei para que lá andávamos, pelo menos na Guiné. Nem a água se aproveitava. Um dia acertaram uma morteirada na lancha e caí ao rio Geba, na bolanha, bebi água salobra. Enchi a barriga. Ainda hoje cuspo quando me lembro do sabor. Estes camarões congelados não têm nenhum sabor.”