Os riscos de atirar pedras às janelas do vizinho

Carlos Matos Gomes
4 min readFeb 22, 2023

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Os conceitos de Estado e de Soberania tal como hoje os conhecemos surgiram no séc. XVI. Principalmente com «Os Seis Livros para a República», de Jean Bodin (1530–1596), o conceito de soberania integrava as características do poder absoluto com uma unidade que se sobrepõe à complexa rede de suseranias, de laços hierárquicos pessoais, ao parcelamento da autoridade, à confusão entre poderes públicos e privados existentes no feudalismo. O poder soberano passou a ser entendido como estando acima de tudo, como sendo um poder absoluto, autossuficiente, que não se sujeita a outro poder.

A invocação do direito de soberania da Ucrânia assenta nesta interpretação anacrónica e, acima de tudo, mistificadora, pois nunca existiu um tal tipo de soberania no Ocidente, nem no tempo do império romano, desde logo porque havia o papado de Roma como autoridade supranacional, e depois as alianças entre estados, de que a aliança luso-britânica foi um dos primeiros casos e a NATO e União Europeia os mais recentes.

O Estado moderno europeu nasceu depois da Guerra dos Trinta Anos (1618–1648), que veio a dar origem ao Tratado de Vestefália (1648) com requisitos específicos: ser nacional (povo e território), secular e soberano, esta condição entendida como «poder supremo e aparentemente ilimitado dando ao Estado capacidade não só para vencer as resistências internas à sua ação como para afirmar a sua independência em relação aos outros Estados».

Nos dias de hoje estas condições estão muito limitadas pela globalização. Nenhum Estado, nem mesmo as superpotências, como se vê na guerra na Ucrânia, é independente e dispõe de um poder absoluto. Todos são cada vez mais interdependentes e integrados em redes de organizações internacionais. Querer fazer de um estado quase falhado e dependente como era a Ucrânia, um estado dotado de poderes soberanos absolutos, como o de ameaçar o vizinho, alugando o seu território a um inimigo, é um ato que apenas tem justificação na medida em que quem morre pela causa americana são ucranianos, porque os mortos russos contam como elementos de desgaste do inimigo russo, um dos objetivos de quem patrocina a guerra por procuração.

A justificação para esta guerra do Ocidente alargado, sob o comando dos Estados Unidos, contra a Rússia para defender a soberania da Ucrânia é uma narrativa de herói de banda desenhada, ou de jogo de computador com muitos efeitos especiais, mas tem tanto de verdade quanto ade um assaltante de residências dar pedras a um pequeno rufia para ele ir partir as janelas da casa do polícia do bairro, justificando a oferta com a invocação da maldade intrínseca do polícia, que um dia, no futuro, atacará o rufia e prometendo-lhe mais pedras e maiores, ou até uma fisga!

A perversão do conceito maximalista de soberania tem raízes na matriz que a impôs como um direito geral e planetário. A igualdade entre os Estados-Soberanos consta do parágrafo primeiro, artigo segundo da Carta da Organização das Nações Unidas (ONU) que reza: “a Organização das Nações Unidas é baseada no princípio da igualdade soberana de todos os seus membros.” Mas há uns mais iguais que outros, os membros do Conselho de Segurança, que dispõem de direito de veto sobre as resoluções! E não existe nenhuma entidade de julgamento e punição das violações, o que torna a declaração um manifesto de boas intenções, na linha das normas de Santo Agostinho para a guerra justa. A realidade nega as doces palavras: A soberania não tem o mesmo valor para todos os membros. Cuba ou a Republica Dominicana não têm o mesmo estatuto de soberania dos Estados Unidos, a Ucrânia não tem os mesmos direitos de soberania da Rússia e o Tibete não tem os mesmos da China. São factos! O exercício da soberania exige meios e não sermões.

Outro truque de manipulação é o de confundir duas estâncias do exercício da soberania, a soberania interna e a externa. A força do Estado é relativamente autónoma no âmbito interno, mas no plano externo é necessário que os demais estados o reconheçam como pessoa internacional, o que exige que seja demonstrada a sua independência de outros. O que se observa hoje no mundo é que a soberania de muitos estados não passa de mera formalidade, o que inclui estados falhados, estados vassalos e estados provocadores.

Os Estado Unidos utilizaram Zelensky e os seus patrocinadores como dirigentes de um estado provocador, sem lhes dar os meios para sustentarem a provocação, como Israel o conseguiu. Mas o regime sionista de Israel foi instaurado em 1948 e o primeiro grande provocação aos vizinhos ocorrerá com a Guerra dos Seis Dias, em 1967, quase vinte anos depois e a Guerra do Yom Kipur em 1973, vinte e cinco anos mais tarde. A utilização da Ucrânia como elemento provocador ocorreu oito anos após a implantação do atual regime na sequência da agitação da Praça Maidan, em 2014, um espaço de tempo muito curto para preparar uma provocação consistente, resistir e alcançar um estatuto de estado soberano que seja mais temido do que amado. O resultado está à vista. A Ucrânia é hoje uma estado que serve ao Estados Unidos como o Grupo Wagner serve a Rússia. Os ucranianos são pagos e armados pelos EUA como os wagnerianos o são pela Rússia. A Ucrânia, o povo, sofrerá por conta de Zelensky para ficar a saber que a soberania não é um direito abstrato, nem absoluto, e que, dado os estados, ao contrário das famílias não poderem mudar de casa, necessitavam de boa vizinhança, de não dar passos maiores do que as pernas e não confiar na proteção de quem quer tirar castanhas do lume sem queimar as mãos.

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