Carlos Matos Gomes
4 min readOct 25, 2021

Os novos cantores de protesto

Das boinas, dos cânticos e dos gritos de guerra

Tenho idade e experiência de vida para não ser ingénuo. E também para reconhecer técnicas velhas de manipulação, mesmo modernizadas.

A manifestação de grupos de antigos militares no dia do Exército a propósito de cânticos, gritos e boinas é uma evidente ação política de agitação, agitprop.

O canto coral em marcha de desfile é uma moda recente nas forças armadas portuguesas. As tropas especiais nunca cantaram a marchar nos desfiles dos dias solenes, nem antes nem depois do 25 de Abril de 1974, do 10 de Junho, 25 de Abril, dias das Forças Armadas, guardas de honra.

A moda dos corais militares começou no final dos anos 80, nos Festivais de Bandas Militares organizados pelo Estado-Maior das Forças Armadas. Estes festivais realizavam-se pelo Verão, quase sempre em estádios de futebol, em várias cidades do país. Tinham a finalidade de mostrar as capacidades das novas Forças Armadas pós coloniais, fomentar a ligação destas com a sociedade e angariar voluntários, dado que, principalmente no Exército, estavam a processar a passagem do serviço militar de conscrição para o voluntário e de contrato.

A moda do cântico coral militar em cerimónias militares — festivais, desfiles, guardas de honra — surge, pois, no âmbito de festivais militares do tipo anglo-saxónico de Jamboree. Juntamenta com exibições de ordem unida autocomandada, em que os fuzileiros se especializaram, exibições de técnica de combate individual entre outros, rappel, slide, escalada.

Não existe, pois, nenhuma tradição de marcha guerreira — é uma modernice. Assim como é o desfile de tropas em cerimónias com equipamento de combate, pinturas de camuflagem, mochilas, até redes para atiradores especiais. Uma nova tradição como a das praxes estudantis nas universidades de Lisboa e do Porto, com meninos e meninas em trajes de que nem sabem a origem a reivindicarem a “tradição académica” de humilharem os outros.

Estas modas colidem, aliás, com a tradição das forças armadas, que sempre utilizaram em parada uniformes de gala: as escolas militares utilizam barretinas com plumas e penachos, ombreiras, talabartes, francaletes dourados, calçado de verniz ou brilhante. A talhe de foice, o presidente do CDS, tratado na imprensa por Chicão, deve ter-se esquecido de como se uniformizava para os desfiles do Colégio Militar, que frequentou. E, já agora, talvez fosse bom que dissesse quais as canções que cantava ao descer a Avenida da Liberdade.

Mais, a música em cerimónias militares está regulamentada. Determinados hinos correspondem a determinadas patentes, caso da Maria da Fonte, por exemplo. A cadência da marcha também está nos regulamentos. Novas tradições (anglo-saxónicas) são as boinas utilizadas com traje civil, a mão sobre o peito. São, em termos artísticos, tradições pós-modernas.

Uma outra lembrança: em combate os gritos e as letras das canções que os soldados dirigem aos seus adversários não são os que constam dos que os manifestantes entendem ser a sua tradição, e não obedecem às notas aprendidas nos conservatórios de música. E não são próprios para ouvidos em dias de festa. Os excitados que reivindicam a tradição coral não os conhecem…

Nesta assuada do dia 23 de Outubro os cidadãos em geral assistiram, e os organizadores quiseram-nos cúmplices, de um grosseiro aproveitamento de emoções, de desconhecimento do passado das instituições por parte de demagogos e de políticos sem escrúpulos.

Esta assuada não teve por fundo o espirito de corpo, nem a dignidade das forças militares. Foi a sua negação e pretendeu minar os fundamentos do Estado e das suas grandes instituições. Estamos perante sapadores do Estado de Direito e não de cantores de protesto

Esta manifestação conduziu-me a um livro publicado recentemente por um autor francês Laurent Petitmangin, filho e neto de ferroviários, engenheiro e hoje em dia diretor da Air France. Ele desmontou estas técnicas de manipulação e os seus perigos no romance traduzido em espanhol Lo que falta de noche, em que um pai, vindo das esquerdas se defronta com o filho que se fez ultradireitista e se torna violento.

Na entrevista ao jornal El Pais, a jornalista pergunta-lhe: Tem medo da extrema-direita? Responde: Tenho. A extrema direita é como um ancinho, recolhe tudo o que pode. Sim, tenho medo da extrema-direita porque tende a banalizar-se e tem a habilidade de um polvo de deitar os tentáculos a tudo o que pode. Não reclama 100% das suas teses, contenta-se com que as pessoas ingénuas ou manipuladas partilhem algumas reivindicações, como a recusa da Europa, o medo da imigração, agora as vacinas. Sabe abrir passagens como tentáculos e apoiar-se em movimentos de protesto.

A arruaça contra o canto coral nos desfiles corresponde a esta estratégia. Um destes novos cantores de protesto, entrevistado, afirmou que tinham o direito de cantar porque não eram, ao que disse: Arremachos!

É uma revelação do tipo de ideologia que preside a estes protestos.

Os arremachos não cantam, somos nós, seremos as próximas vítimas dos cantores de extrema-direita, se formos nas suas cantorias.