Os eunucos europeus
El manuscrito carmesí. Há muitos anos li este romance impressionante de Antonio Gala, que ficciona o fim do império muçulmano na península Ibérica e a derrota de Boabdil, o último sultão de Granada, que se exilou no Norte de África, onde terá relatado o fim do seu reinado em papéis de cor carmesi, exclusivo da corte. Uma das cenas mais dolorosas e marcantes foi o tratamento dado aos eunucos que serviam nos palácios de Granada. Milhares, produzidos numa fábrica de eunucos em Almeria. Os eunucos de Boabdil foram deixados para trás, como coisas. Eles tinham servido como soldados, como navegadores, como artistas, como médicos, como funcionários. Mas foram abandonados. A União Europeia é hoje o corpo de eunucos do império que tem a sede em Washington.
Na política os atores comunicam por atos. Acting, em inglês, que é a língua do império. A visita do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, a Washington na próxima semana, depois da campanha de genocídio em Gaza, depois da sua condenação como criminoso de guerra e depois da condenação a semana passada da ocupação dos territórios palestinianos, feita pelo Tribunal Internacional de Justiça das Nações Unidas, tem leituras e revela evidências:
A primeira é a de expor que Israel é um agente dos Estados Unidos e todas as ações que executa na Palestina e no Médio Oriente são feitas em nome e em defesa dos interesses dos Estados Unidos. A segunda é que os Estados Unidos se colocam de fora das instituições que de algum modo resultaram do compromisso do pós-segunda guerra de estabelecer uma regulação mínima dos conflitos. O desprezo pelas instituições internacionais significa que a ordem internacional resultante da Segunda Guerra já não existe. Invocá-la é pura hipocrisia. A terceira conclusão é a de que, para o resto do mundo, dada a política de submissão da Europa aos interesses dos Estados Unidos, a Europa é entendida como uma parte destes e não como uma entidade com autonomia. Logo, um ator irrelevante.
O final da ordem resultante da Segunda Guerra criou uma nova situação de ocorrência de um “transiente”, na definição do cientista português do MIT Pedro Ferraz de Abreu, um estado de crise de um sistema à beira da rutura, que abre o caminho para um novo estado do sistema — como ocorreu na queda dos impérios, antes das grandes convulsões, desde as cruzadas às guerras mundiais.
Vivemos um transiente em que o grande império se desfaz diante dos nossos olhos em ambiente de jogo de luta livre americana, tendo por protagonistas dois lutadores senis, oligarquias em disputa, um império que não merece confiança, agressivo, sem lealdades nem princípios. Em que a alternativa para as pequenas e médias potências é uma nova entidade fiável e estável ao longo da História, a China.
Para o resto do mundo, a visita de Netanyahu aos Estados Unidos a um presidente que acabou de atirar a toalha ao chão e que aproveitará a viagem para apresentar os seus préstimos ao próximo, tem o mesmo significado da prevista e inevitável visita do trio da União Europeia, as duas warmongers e António Costa de chevalier servant, e do novo mordomo inglês: são o mesmo mundo de uma época de domínio do Ocidente que durou cerca de 500 anos e que terminou.
Alguém quer saber dos eunucos dos impérios vencidos?