Carlos Matos Gomes
3 min readJul 30, 2021

Os Espirito Santo, Otelo e os 4 pilares do regime

O regime em que ainda vivemos assenta em quatro pilares fundadores: os Espirito Santo (representados pelo atual patriarca Ricardo Salgado), Otelo, Mário Soares e Eanes. Os Espirito Santo eram os banqueiros do regime de Salazar (não os únicos, mas os principais); Otelo foi o comandante da operação que derrubou o regime de Salazar (Marcelo Caetano não passou de um cuidador de tratamentos paliativos) e deixou o povo entrar na história; Eanes comandou o 25 de Novembro de 75, que abriu as portas ao regresso dos banqueiros e do seu sistema de criação de moeda, tarefa fundamental para a existência do atual regime de democracia liberal, um retorno de que Mário Soares politicamente se encarregou e apadrinhou.

O novo regime pós 25 de Novembro reestruturou o sistema financeiro português, aproveitando a reversão das nacionalizações de Março de 1975, varrendo os banqueiros da “velha guarda”, para integrar o capital nacional no sistema financeiro internacional e na dependência do espanhol, criando um mercado ibérico. Levou na enxurrada desde Champalimaud (Banco Sottomayor) a Cupertino de Miranda (BPA), os mais representativos desta classe. Foram substituídos por um banco da Opus Dei (Jardim Gonçalves — Milleninum/BCP, vindo de Espanha) e Maçonaria (BPI/Santos Silva). Do antigo regime, restou a família Espirito Santo, respaldada pelas ligações aos Rothschild e Rockfeller, à banca francesa e americana e aos interesses em Angola. (Era importante fazer a história do desaparecimento dos Banco Português do Atlântico e do Sottomayor.)

Na banca, o Grupo Espirito Santo era e foi o elemento perturbador desta redistribuição de cartas. Sobreviveu devido à sua dimensão, à articulação entre finança e os setores produtivos (indústria, imobiliário, agricultura) e aos investimentos em Angola, um conjugação considerada pecaminosa pelos mestres da banca internacional, mas que se manteve durante 40 anos, ao fim dos quais, finalmente, foi derrubado, ou “resolvido”, curiosamente pelo governo amigo de banqueiros, o de Passos Coelho e por um governador afeto, Carlos Costa.

É a esta luz — da existência de um acerto de contas — que julgo deve dever ser interpretado o coro que desde há dias se levantou contra Ricardo (Espirito Santo) Salgado, a propósito das férias na Sardenha, tal como o que regougou contra Otelo, aproveitando a sua morte. Não há nesta aparente indignação qualquer réstia de elementos de ordem moral, nem ética, nem humanitária. Os coristas conviveram sempre muito bem com ditadura e a violência de que acusam Otelo e com a corrupção e a ostentação de que acusam Ricardo Salgado. Alguns foram mesmo e simultaneamente confessos integralistas (Deus, Pátria e Autoridade), terroristas praticantes, cúmplices e beneficiários do sistema de negócios, de lavagens de dinheiro, de offshores, de festas e férias de Ricardo Salgado, seus devedores, seus pedintes, ou seus moços de recados.

Não existe uma vestígio de boas intenções neste clamor de carpideiras dos jornais e televisões contratadas para empolarem os eventuais crimes de Otelo (julgados e absolvidos) e os de Ricardo Salgado (a julgar numa eternidade). Estão a cumprir um papel num guião que não pode ser outro que não seja o de destruir este regime, imperfeito, é certo, mas que ainda assim funciona com pesos e contrapesos.

A verdade é que, com ou sem teoria da conspiração, está em marcha um plano para impor uma nova distribuição de poderes no que se designou como o Ocidente, filho da Revolução Francesa, que garanta a sobrevivência das minorias privilegiadas nos tempos difíceis que é fácil adivinhar que se aproximam, com escassez de recursos e alterações dramáticas nos ecossistemas. Uma campanha de grande envergadura e que tem como estrela mais visível o americano Steve Bannon. Pode parecer ficção científica, é claro.

Entretanto Otelo deixou a sua subversiva memória de liberdade e de participação popular, que é necessário apagar, e Ricardo Salgado mantem os seus segredos, que lhe garantem férias na Sardenha, mas há muita gente que gostaria de o ver também em cinzas e não de calças de linho e polo de marca exclusiva. Ele afirma que tem esquecimentos. É um seguro de vida, um aviso de que podem existir lembranças seletivas.

A moral desta história pode ser irónica: devermos a defesa do regime de democracia liberal que teve por empreiteiros duas personalidades tão distintas como Eanes e Mário Soares à família Espirito Santo, os grandes banqueiros do Estado Novo e à semente libertária deixada por Otelo Saraiva de Carvalho, o revolucionário adepto do poder popular e da democracia direta!