O terramoto — O Cândido de Voltaire e a revolução portuguesa á luz do cânone ocidental
Nos anos de 1974 e 75, Portugal foi o destino dos pensantes europeus de todas as tendências que quiseram observar ao vivo o fenómeno e refletir sobre ele. Um laboratório natural. A releitura à distância de cinquenta anos de várias análises sobre o processo político português do 25 de Abri elaboradas por personalidades que representavam o pensamento europeu da época e detinham o poder de o influenciar ajuda a, mais do que perceber o que aconteceu, a entender a grelha de análise que foi utilizada pelos investigadores-visitantes.
Encontro-me na privilegiada posição do indígena que descobre como o antropólogo avaliou os seus sistemas de parentesco e as suas práticas sociais. Esta experiência tem antecedentes na apreciação de Voltaire ao terramoto de 1755, em Lisboa, como uma catástrofe que abalou o sistema de crenças europeu, ainda dominado pela explicação divina dos desastres.
Em 1755, como alguém escreveu, a realidade exaltou-se e colocou em apuros a doutrina, mas não a erradicou. Voltaire hesita entre a causa natural (a ciência), a causa divina (o castigo de Deus aos pecadores, como na Sodoma bíblica) e a moral dos homens. Consultou vários relatos e testemunhos pessoais para compor “Cândido”. Numa das cartas escreveu: “Esta é de facto uma cruel peça da filosofia natural. Seria difícil explicar como as leis do movimento podem produzir tão terríveis desastres quando 100 mil formigas, nossos vizinhos, são esmagados até a morte em questão de segundos (…); por toda a Europa, famílias reduzidas à mendicância, e até mesmo fortunas de mercadores engolidas nas ruínas de Lisboa”.
No capítulo de Cândido, intitulado “O Terramoto”, Voltaire descreve a chegada à cidade de Lisboa de Cândido, do seu mestre Pangloss e do marinheiro que os trouxera no seu barco. Sentem o solo tremer sob os pés; o mar, furioso, galga o porto e despedaça os navios ancorados. Turbilhões de labaredas e cinza cobrem as ruas e praças públicas de Lisboa; as casas desabam os habitantes são esmagados sob as ruínas. “Qual poderá ser a razão suficiente deste fenómeno?”, perguntou Pangloss. “Chegou o último dia do mundo!”, exclamou Cândido. O marinheiro que os transportara alheio ao diálogo dos senhores correu para o meio dos destroços, e, segundo Voltaire “afronta a morte em busca de dinheiro, acha-o, embriaga-se; depois de cozinhar a bebedeira, compra os favores da primeira rapariga de boa vontade que encontra sobre as ruínas das casas e no meio dos mortos e moribundos”. Enquanto o marinheiro se satisfaz, Pangloss puxa-o pela manga. “Meu amigo isto não está certo, ofendes a razão universal, empregas muito mal o teu tempo.” — “Vai pró diabo! Sou marinheiro; marchei quatro vezes sobre o crucifixo, em quatro viagens que fiz ao Japão; e ainda me vens com a razão universal!”
O Terreiro do Paço e o Largo do Carmo já tinham sido o palco de um terramoto em 1755 — de cuja dimensão ainda resta a frase “caiu o Carmo e a Trindade”.
Voltaire dedicou um poema à grandeza do sismo, Poème sur le désastre de Lisbonne (Poema sobre o desastre de Lisboa) onde ele, através da catástrofe portuguesa, dá conta da queda das conceções do Mundo vigentes à época, que assentavam na convicção de que tal fenómeno jamais poderia ter ocorrido se a Terra fosse, como até esse momento se acreditava cegamente, uma mera criação divina, regulada pelos princípios de ordem e harmonia.
No Terreiro do Paço e no Carmo ocorreu o que jamais teria acontecido se o 25 de Abril fosse um mero golpe de Estado, ou um pronunciamento militar, uma mera criação de uns deuses — generais na versão mais comum — a entrada do povo e a transformação do golpe em revolução. E essa heresia foi determinada por Otelo e assumida por Salgueiro Maia. A ordem, a reconstrução, ocorreria a 25 de Novembro de 1975.