O “Sistema” funcionou — a vitória do Livro Razão
A crucificação foi adiada
Foi por um triz.
A origem da expressão “por um triz” tem uma versão histórica pouco animadora. “Depois de bajular o poder e a vida luxuosa do tirano Dionísio de Siracusa, o cortesão Dâmocles recebeu de Dionísio a proposta de trocarem de posições. O poder e a vida luxuosa passaram para Dâmocles, mas com o detalhe perturbador de à mesa dos banquetes estar sempre pendurada uma espada estava sobre cabeça de Dâmocles , presa apenas por um fio de crina de cavalo”, um thríks, fio de cabelo em grego.
O fio de cabelo aguentou ainda desta vez, e até ver, a espada sobre a cabeça da UE. Mário Centeno, felizmente, tem uma farta cabeleira e bom cabelo (e boa cabeça para produzir a queratina essencial aos fios pilosos) e ajudou a segurar a espada a baloiçar, mas a UE está quase careca e, em minha opinião, não só vai ficar careca e viver sem cabelo, como sofrerá uma mudança radical de configuração para os seus cidadãos sobreviverem enquanto portadores de uma civilização que já foi decisiva e, se não inspiradora, no mínimo vencedora. O que é sempre melhor do que ser servidora.
Não é ainda o tempo de analisar os resultados da reunião do Eurogrupo de 9 de Abril, mas o comunicado transmite o que julgo serem duas mensagens, uma boa e outra má. A boa, quanto a mim, a União Europeia mantém-se enquanto entidade política, o que é bom, porque se não se mantivesse a consequência seria a de hoje estarmos confinados e numa situação de salve-se quem puder, em debandada. A má: continuamos na mão de contabilistas (eles preferem o titulo de financeiros e economistas) que gerem o mesmo Livro Razão de registo de transações e contas de apurar saldos e os seus resultados.
No final da crise, como reza o comunicado, serão efetuados os balancetes da “empresa”: “Se estamos diante de uma crise temporária, simétrica e totalmente exógena como crise, não há razão para duvidarmos de que o passado anterior que todos nós estávamos seguindo seja retomado novamente e que os países o sigam”. Mantém-se o sistema contábil, garantem de Bruxelas, apesar de por videoconferência.
O título do comunicado bem poderia ser, adequando-o aos tempos: Devido à crise e à data litúrgica comum a católicos e protestantes, a crucificação do sistema foi adiada.
Num artigo de opinião publicado no DN de 3 de Abril de 2020, o ministro dos negócios estrangeiros da Turquia escreveu que em 2008, quando o mundo sofreu a pandemia económica, o G20 foi capaz de “trazer um sentido de orientação e, consequentemente, estabilidade à economia mundial vacilante”. O “sistema” tinha funcionado então, considera o ministro, mas graças, em grande medida, a um ator global relativamente novo. “Também desta vez temos de nos preparar para um impacto económico semelhante e maciço e assegurar que o “sistema” funcione, mesmo que façamos as correções e substituições necessárias.”
De um ministro dos negócios estrangeiros, como de outros burocratas, só podemos esperar banalidades e conveniências sobre o “sistema” (as comas são minhas) que deveria ser um conjunto de elementos interdependentes formando um todo organizado, com um objetivo geral a ser atingido, mas é, na realidade, um poder unilateral que impõe pela força relações desiguais entre os elementos que o constituem.
Ora, o “sistema” funcionou em 2008, como sempre tem funcionado, aprofundando as suas taras essenciais de imposição da lei do mais forte. A ideia de que a mordedura de um cão se cura com o pelo do cão é uma falácia. Não é verdade. Basta o cão estar infetado com raiva. O “sistema” estava infetado antes do coronavírus. Desde que foi criado. E já nem sequer existe o G 20, um grupo de Estados em que os mais poderosos do “sistema” de bolsas e dívidas, além de carteiras, andam agora a assaltar aviões que lhes passam perto com material sanitário!
Ouvi na televisão, há dias, a presidente do FMI, também ouvi a presidente do Banco Central Europeu, a presidente da Comissão Europeia. Tenho ouvido diariamente o Paulo Portas, na TVI, e escolho Paulo Portas porque é o falante português mais talentoso como fiel leitor de escrituras, das verdades bíblicas instauradas no pós Segunda Guerra pelos vencedores e por aqueles ou aquilo que se chama o/a mainstream, a corrente dominante do pensamento das elites ocidentais, seja o que for que entendamos por elite ocidental, do Clube de Bildberg ao complexo militar industrial dos EUA, da família Trump, à Clinton, da Opus Dei à Nato, da Reserva Federal Americana à Escola de Economia de Chicago. Também tenho assistido ao regateio habitual no mercado do Eurogrupo, cada tendeiro a defender a sua tenda. E visto Mário Centeno no dificílimo papel do sapateiro remendão a tentar tapar buracos para podermos voltar a calçar os mesmos sapatos.
Todos falaram e continuam a falar do pós-crise como se a crise económica fosse devida ao vírus Codiv-19 e não às morbilidades inerentes ao “sistema”, i.e., à economia tal qual ela foi reorganizada após o fim da URSS e da entrada da China na Organização Mundial do Comércio, do consulado do duovirato Regan-Tatcher e o doente pudesse recuperar sem alterar o essencial do seu comportamento. Como se, em termos médicos, um obeso, alcoólico, fumador e também diabético que sofreu um acidente cardíaco pudesse recuperar e até revificar a sua forma física, sem alterar radicalmente a sua alimentação, o seu comportamento, deixar de fumar, de beber, sem reiniciar a sua vida noutras bases. Há quem acredite que basta tomar umas já conhecidas mezinhas receitadas pelos mesmos feiticeiros para o sistema voltar a funcionar. Portas é em Portugal o melhor pregador dessa fé de que ”sistema” pegou de estaca e só há que o regar e aparar de vez em quando.
Quem ajudou à missa nos anos 60, antes do Concílio Vaticano II, sabe o que é uma cerimónia apaziguadora de medos terrenos e de promoção de esperanças no Além cantada em latim e com os celebrantes de costas para a assembleia! É fornecer a um público crente sons que transportam verdades inquestionáveis, proferidos por velhos curas que mastigam palavras sobre o missal, sem pensarem nem no que lá está escrito, nem no que lá não está, acompanhados por acordes de órgão e alguns fumos de incenso.
Mas
Não adianta cantar, nem mesmo os responsos, as antigas orações utilizados pelos nossos antepassados (aqueles que tinham fé) para encontrar objetos perdidos ou roubados. É de substituir um sistema que se perdeu a ele próprio, assente no roubo, que se trata agora e não de o recuperar (a pirataria às máscaras é um episódio caricaturalmente revelador do “sistema” ). Mas é de recuperação do “sistema” que nos falam os sacerdotes e sacerdotisas!
O discurso dos sacerdotes do “sistema”, como o dos comentadores mais frequentes na comunicação social, os sacristãos para todo o serviço, é duplamente anacrónico. Nem o “sistema” de que falam já existe, nem o que resta dele tem recuperação. O que há a fazer é, em linguagem de antigos taxistas, colocar o taxímetro a zero e iniciar nova corrida!
Há uns sapatos para atirar fora, um morto para enterrar e vivos para cuidar, diria o Marquês de Pombal.
No domingo publicarei um texto sobre a ressurreição. Estamos na Páscoa e eu também li a Bíblia.