O Serviço Militar ao Serviço de Quem?
Em contracorrente aos discursos da verdade única que os aparelhos de propaganda e manipulação nos transmitem, o professor Viriato Soromenho Marques publicou há dias no DN mais um texto de análise da realidade que vivemos e da que nos está a ser preparada.
Talvez esta análise crua tenha a mesma eficácia de uma pregação a um rebanho de cordeiros sobre os perigos que os aguardam com as celebrações judaicas da Páscoa, quando os pastores lhes estão a fornecer ervas tenras para a engorda, antes de os sacrificarem, mas vale a pena acompanhar o autor, para que os magarefes não se sintam pregadores evangélicos, incontestados vendedores de asas de subir aos céus. O texto tem por título “A Ocidente, uma desolada paisagem”. Começa por pedir que esqueçamos que há uma guerra europeia centrada na Ucrânia que se pode tornar mundial e que enfrentemos a dolorosa pergunta prévia: O que é o Ocidente e quais são os seus valores atuais? Isto é, digo eu: o que nos prometem a troco da vida dos jovens europeus e das ruínas das nossas casas? Começa o professor Soromenho Marques por relembrar que, de acordo com orientações estratégicas há muito públicas e publicadas e seguindo vozes autorizadas da Casa Branca e do Congresso, existe um saldo positivo de mais esta guerra para a oligarquia que governa os Estados Unidos, e que o que está em causa não é, nem nunca foi, a vitória da Ucrânia, muito menos a de uma Ucrânia livre e com um regime representativo do seu povo, mas sim usar aquele povo como aríete para enfraquecer a Rússia.
Viriato Soromenho Marques deixa claro a quem souber ler que a guerra na Ucrânia é um negócio e está a ser tratada pelos seus administradores como um negócio, com deve e haver, lucros e prejuízos. Os Estados Unidos fazem contas e concluem que a guerra é lucrativa para as suas elites financeiras e industriais e que, com os contratos já impostos à Europa para ela se “defender” de uma invasão russa, os lucros se prolongarão para lá do fim da guerra. Quanto à Rússia: Trinta anos (desde o fim da URSS) de estratégia de encostar a NATO às fronteiras da Rússia, sobretudo na Ucrânia, mas antes dela na Polónia e nos países bálticos, levaram, como estava previsto que levassem, o urso a acordar. Os EUA estavam preparados para lucrarem com o seu despertar.
As sanções, o ataque à exportação de petróleo e gás natural russo, o impedimento de mais oleodutos (sabotagem do Nordstream II), a fuga de cérebros, o fomento da instabilidade no Cáucaso, tudo isso estava prescrito num vasto documento que mais parece uma declaração de guerra: (Extending Rússia. Competing from Advantageous Ground, James Dobbins et alia, Santa Monica, CA, Rand Corporation). Nesse saldo positivo dos EUA, além da rotura dos laços entre Berlim e Moscovo, entra também o alargamento da NATO e a convicção de que a Europa vai aumentar duradouramente as compras em armamento norte-americano (quer ganhe Biden ou Trump), assegurando um grande negócio, nutrido com centenas de milhares de mortos e estropiados na Ucrânia, que se podem alargar a outras áreas e geografias na Europa e na Eurásia
“E que pensar da UE, a outra metade do Ocidente?” (Pergunta Viriato Soromenho Marques e esclarece: “Nunca a Europa sofreu, em tempo de guerra, com líderes tão perigosamente impreparados para governar. Em setembro de 2022, o triunfalismo, a presidente da CE (Ursula Von Der Leyen) troçava dos russos, dizendo que a eficácia das sanções obrigava Moscovo a usar os chips dos eletrodomésticos para fins militares. Hoje, um pânico antigo (“Vêm aí os russos”) percorre as capitais europeias. Basta ouvir o “valente” Macron, ou ler o apavorado Charles Michel.” Num artigo do El País de 29 de Março de 2024, Donald Tusk, um neoliberal que é primeiro ministro da Polónia, afirmava: “Estamos en una época de preguerra. No exagero”. Respondia assim ao primeiro-ministro espanhol, que na última cimeira europeia pediu que se baixasse o tom belicista.
Nesta linha dos apelos à guerra estamos a ser bombardeados com uma campanha de manipulação para reintroduzir o serviço militar obrigatório. Portugal cumpre o papel que lhe foi distribuído. Não é um acaso, nem uma inocente coincidência que no mesmo dia surjam notícias da defesa desta reintrodução através de declarações do chefe do estado-maior general das Forças Armadas, do chefe do estado-maior do Exército e até, pasme-se, do chefe de estado-maior da Armada, de uma Armada que, mesmo durante a guerra colonial, manteve a maioria dos seus efetivos profissionalizados! Da campanha escapou até ver o chefe do estado-maior da Força Aérea. Não haverá para já pilotos ou controladores de tráfego aéreo, meteorologistas ou mecânicos de aeronaves de recrutamento obrigatório! Do novel ministro da Defesa, o lusito Nuno Melo, espera-se sem surpresas que desembainhe a espada de pau e vá a Washington comprar o que der mais comissões e proporcione aos intermediários, com Paulo Portas como chave-mestra, o orgulho de Portugal possuir os melhores artefactos bélicos e de participar na primeira linha da defesa dos valores do Ocidente. Os discursos estão disponíveis no ChatGPT. Basta tocar na tecla Enter.
Convém pensar na falácia do serviço militar obrigatório: as guerras atuais assentam na operação e gestão de sistemas de armas e de comando e controlo altamente sofisticados, que exigem operadores com elevado nível de preparação, o que apenas é possível com uma exigente formação técnico científica e longo período de treino, o que implica a profissionalização dos militares. Mesmo em teatros de operações de baixa e média intensidade como os do República Centro Africana ou do Mali, os europeus só empregam tropas profissionais. A proposta de serviço militar obrigatório para um conflito de alta intensidade na Europa apenas pode ser racionalmente justificado com a previsão de uma próxima crise social resultante da evolução tecnológica, que criará uma multidão de jovens sem emprego, sem utilidade económica, potenciais elementos perturbadores. Alguém definiu o soldado como um “desempregado armado”. O serviço militar obrigatório servirá, assim, para aliviar tensões sociais e políticas. Mais, o serviço militar obrigatório em ambiente de grande letalidade recupera o conceito maltusiano da utilidade de eliminação de excedentes de população. O modelo social europeu está a atingir o máximo de população que pode suportar. Não há garantia que os jovens e adolescentes nascidos no início do século XXI tenham possibilidade de receber os benefícios sociais instituídos na Europa no pós-Segunda Guerra, há que eliminar uma boa parte desta multidão de futuros beneficiários, de subsídiodependentes: uma guerra de alta tecnologia com militares de serviço militar obrigatório como alvos moles é uma solução que os partidos populistas escondem atrás de uma retórica demagógica de quem não trabalha não come e do vai para a tua terra.
Por fim, a discussão das vantagens do serviço militar obrigatório serve objetivos de propaganda e ação psicológica: prepara as opiniões públicas para a situação de guerra, que será mais fácil e naturalmente aceite quando ela for desencadeada, surgirá nos meios de propaganda e na voz dos seus agentes como uma “escola de virtudes” e de nacional-patrioterismo pelas forças políticas de direita, como um instrumento de integração social e étnica, como uma alternativa às políticas restritivas de imigração. A promoção do serviço militar obrigatório, a conscrição napoleónica, serve os poderes instalados e é uma ameaça aos cidadãos em geral. É uma falsa e perigosa solução. Serve para a criação do tal “estado de pré-guerra” de que falou Donald Tusk, um discurso e um ambiente emocional muito parecidos, aliás, com os que antecederam a Primeira Grande Guerra.
Ao contrário da maioria dos comentadores e comentadoras selecionados para o espaço público julgo imprescindível conhecer a origem das fogueiras de hoje, à semelhança da necessidade de conhecer os 10 Mandamentos bíblicos para perceber a origem do conceito de Deus Único, ter lido o sermão da montanha para entender o cristianismo e as cartas de São Paulo para chegar aos fundamentos da Inquisição: Alguém consegue imaginar que valores arengarão os políticos europeus e os generais europeus aos contingentes de jovens soldados do serviço militar obrigatório formados e alinhados antes de embarcarem como carne para canhão para mais uma campanha? Os da libertação dos lugares santos, como nas cruzadas? Os da cristianização e da europeização como na expansão europeia que deu origem à ocupação de meio mundo e destruição das suas culturas e povos, que deu origem ao colonialismo? Os valores que na Europa originaram as chacinas ideológicas das guerras santas, da inquisição, da supremacia rácica? Que valores a defender até com sacrifício da própria vida constarão do código pelo qual os jovens europeus serão alistados?
Estamos na Páscoa dos cristãos, que no Ocidente celebra a ressurreição do único ser humano que terá ocorrido em dois mil anos! Mas não haverá ressurreição para os que morrerem na guerra que está a ser preparada, como não houve para os milhões que morreram nas anteriores. Não são apenas o Ventura, ou a senhora Le Pen que fazem promessas mortais… Os europeus devem perguntar aos candidatos a eurodeputados o que pensam da nova guerra e da proposta de reintrodução do serviço militar obrigatório que está a ser tão insidiosamente lançado como um novo desodorizante.