O passado não é cor-de-rosa, mas não é conveniente afirmar que o presente também não

Dois falsos amigos e tristes vendedores de perdões

Carlos Matos Gomes
4 min readNov 7, 2023

Há quem julgue que a desfaçatez é um desinfetante histórico. O jornal Público de 7 de Novembro de 2023 notícia que o presidente da Alemanha, Frank-Walter de sua graça, pediu perdão pelos atos cometidos pela Alemanha no início do século vinte na costa oriental de África, onde terão sido mortos entre 200 e 300 mil tanzanianos (de passagem podia ir à Namíbia e pedir perdão pelo genocídio de 80% dos Hereros, os habitantes originais). Quanto ao rei da Inglaterra, Carlos, de sua graça, condenou os atos de violência “abomináveis” do colonialismo — só à conta do herói inglês Cecil Rhodes terão sido mortos 60 milhões de africanos para grandeza e enriquecimento das suas companhias, a The Beers e a British South Africa Company .

Entretanto, antes das lágrimas e do perdoem-me, desculpem lá, mas tinha de ser, o colonialismo europeu cumpriu o seu papel histórico de explorar as riquezas e os povos, de ocupar territórios. Agora está em curso um simulacro de reparação com a devolução de objetos de arte africana (o que inclui um padrão português que se encontra na Alemanha). «Meus amigos, para vos compensar vamos devolver a bonecada de pau e de marfim que temos nos esconsos dos nossos museus! O que importa agora é fazer bons negócios, e evitar que vocês nos troquem pelos chineses e pelos russos!» Esta é a mensagem sublimar que os dois dignitários levam nos lenços de assoar as lágrimas.

As desculpas e as lágrimas de presidente da Alemanha e do rei de Inglaterra são tão sérias como as de um antigo distribuidor de pastilhas para a diarreia que aparece dias depois com o melhor sorriso a vender rolos de papel higiénico!

A esta atitude chama-se desfaçatez com os seus múltiplos sinónimos: descaramento, atrevimento, insolência, desrespeito, insulto, desaforo, cinismo, desavergonhamento. A este ato de contrição chama-se ainda atirar areia aos olhos do rebanho, mesmo que à custa do Walter-Frank e do Carlos de Inglaterra assumirem a sua desonestidade estrutural. É assim que cumprem o seu dever de patriotas, vendendo o caráter, a que porventura nunca atribuíram valor.

Eles sabem que o passado de há cem anos é o presente da Palestina, por exemplo. O Walter-Frank e o Carlos de Inglaterra sabem que daqui a cem anos os seus sucessores estarão, com o mesmo descaramento, a pedir perdão pelos atos abomináveis do Ocidente Alargado, ou o que lhe tiver sucedido, no Iraque, no Afeganistão, na Líbia, na Síria, na Sérvia, no Chile, na Argentina, no Brasil, na Indonésia, em Jerusalém, em Gaza… Os sucessores destas tristes figuras, a que se podem adicionar os de Ursula Von der Leyen, da marioneta que é secretário da NATO, pedirão desculpa por terem andado a vender guerras como os vendedores de praia vendem óculos Ray Ban, camisas Lacoste, relógios Rolex genuínos e saídos das melhores fábricas de candongueiros e que só passado um século descobriram que tudo era falso!

Estamos, pois, e em primeiro lugar, perante pantomineiros, mas não de idiotas que não sabem o que andam a fazer. Sabem. O perdoem-me queridos africanos tem tanto de sincero quanto as condolências de um cangalheiro durante uma epidemia. Os pedidos de desculpa do cavalheiro alemão e do cavalheiro inglês — duas personagens de representação — pretendem transmitir aos africanos uma mensagem muito explícita: queremos continuar a fazer negócios convosco, esqueçam o passado. Não nos troquem pelos russos e pelos chineses porque se arrependerão.

As desculpas destas duas tristes figuras são apenas toalhetes desinfetantes para os homens de negócios e os militares do Ocidente Alargado continuarem no mercado de África, a tomarem os africanos como gente inferior que não percebe o que se esconde no perdão dos brancos! Atrás destas figuras de representação surgirão em África os assassinos, os agentes promotores de golpes de Estado, de guerras civis pelo petróleo ou pelos diamantes de sangue… o Walter Frank e o Carlos de Inglaterra sabem quem os seguirá depois de verterem as suas lágrimas.

Há quem respeite gente que se presta a estes papéis, que respeite gente como o Walter-Frank e como o Carlos de Inglaterra.

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Carlos Matos Gomes
Carlos Matos Gomes

Written by Carlos Matos Gomes

Born 1946; retired military, historian

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