O meu conto de Natal
A minha vida, como a de todas as pessoas é feita de histórias. Passei natais estranhos, no sentido de serem muito diferentes dos normais, isto é, daqueles que passei enquanto criança, enquanto me formei como ser humano pertencente a uma dada civilização e enquanto criei uma identidade que deveria marcar-me para o resto da vida. Marcou, mas com muitas amolgadelas e dúvidas.
Calhou-me há uns anos passar a noite de Natal com um camarada que pertencia a uma civilização assente na religião islâmica. Para o Mamadu, um nome que remetia para o profeta Maomé, ou Muhamad, a noite de 24 para 25 de Dezembro não era Natal. Nem era sequer o mesmo o ano nem o mesmo mês em que estávamos a viver. Isto é, o tempo era o mesmo, mas o calendário dele estava desfasado do meu seiscentos e vinte e dois anos.
O meu calendário começava com o nascimento de Jesus, o que seria Cristo. Não exatamente, mas seis dias depois, a criança nascera a 25 de Dezembro e o meu calendário, dito do papa Gregório, começava a um de Janeiro do ano seguinte. O Mamadu não percebia porquê, nem eu e eu também não compreendia que tempo dele começasse com uma fuga. Com a fuga de um mercador árabe da cidade de Meca para a de Medina. Fugas de mercadores são comuns, incluindo árabes. Não há dinheiro para pagara a fornecedores e credores, e a os mercadores desaparecem. Parece que aconteceu ao dito Maomé e há milhões de seres humanos a celebrar um feito tão comum!
Enfim, o Mamadu estava comigo numa noite em que nada tinha que celebrar, mas era meu camarada e acompanhava-me numa velada de armas num posto de sentinela a olhar as estrelas e escutar indícios de ataques. Eu celebrava o quê?
Fosse o que fosse o que os meus me tinham dito que eu devia celebrar, o certo é que só tinha para celebrar uma lata de conserva de chouriço em óleo de mendobi (uma gordura de qualquer coisa), da ração de combate e um cantil de vinho. Era a ceia de Natal que a minha civilização me fornecia para celebrar o nascimento do meu Deus uma semana antes do Ano Novo, o do calendário.
Comem carne de porco dentro das tripas para celebrar o nascimento do vosso profeta? Estranhou o Mamadu. De facto, a tradição era mais variada, incluía bacalhau seco vindo dos mares da Terra Nova, polvo seco, galo capado, cabrito e nalguns casos o que havia. Naquele caso, no posto de sentinela estávamos neste caso: a ceia de Natal era a que havia.
Ofereci metade do chouriço ao Mamadu e um copo de vinho, o que estava na base do cantil. Também havia a tradição de dar presentes aos amigos.
O profeta do Mamadu, o tal comerciante que fugira de Meca, na fuga e como castigo aos que o acusaram de caloteiro, tinha proibido os de Meca de comer carne de porco e beber vinho. Tirara-lhe os vinhos e os petiscos, mas não proibira os presentes! A mim, os meus profetas tinham-me proibido de comer muito. «É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um gordo!» Em minha casa seguiam-se os mandamentos. Podia comer-se tudo o que houvesse e ninguém engordava.
As ordens do tal comerciante cuja fuga inaugurara o calendário do Mamadu intrometiam-se entre a nossa camaradagem, que também era sagrada. E durante uns momentos permanecemos a olhar um para o outro, com chouriço e o cantil de vinho entre nós, o Maomé a fugir, o Cristo nas palhinhas, as estrelas no céu. Um dilema é isto. Os deuses são os criadores de dilemas e nós, os que não nascemos seis dias antes do início do calendário, nem fugimos de Meca, somos quem tem que os resolver.