Carlos Matos Gomes
3 min readDec 26, 2021

O meu conto de Natal

A minha vida, como a de todas as pessoas é feita de histórias. Passei natais estranhos, no sentido de serem muito diferentes dos normais, isto é, daqueles que passei enquanto criança, enquanto me formei como ser humano pertencente a uma dada civilização e enquanto criei uma identidade que deveria marcar-me para o resto da vida. Marcou, mas com muitas amolgadelas e dúvidas.

Calhou-me há uns anos passar a noite de Natal com um camarada que pertencia a uma civilização assente na religião islâmica. Para o Mamadu, um nome que remetia para o profeta Maomé, ou Muhamad, a noite de 24 para 25 de Dezembro não era Natal. Nem era sequer o mesmo o ano nem o mesmo mês em que estávamos a viver. Isto é, o tempo era o mesmo, mas o calendário dele estava desfasado do meu seiscentos e vinte e dois anos.

O meu calendário começava com o nascimento de Jesus, o que seria Cristo. Não exatamente, mas seis dias depois, a criança nascera a 25 de Dezembro e o meu calendário, dito do papa Gregório, começava a um de Janeiro do ano seguinte. O Mamadu não percebia porquê, nem eu e eu também não compreendia que tempo dele começasse com uma fuga. Com a fuga de um mercador árabe da cidade de Meca para a de Medina. Fugas de mercadores são comuns, incluindo árabes. Não há dinheiro para pagara a fornecedores e credores, e a os mercadores desaparecem. Parece que aconteceu ao dito Maomé e há milhões de seres humanos a celebrar um feito tão comum!

Enfim, o Mamadu estava comigo numa noite em que nada tinha que celebrar, mas era meu camarada e acompanhava-me numa velada de armas num posto de sentinela a olhar as estrelas e escutar indícios de ataques. Eu celebrava o quê?

Fosse o que fosse o que os meus me tinham dito que eu devia celebrar, o certo é que só tinha para celebrar uma lata de conserva de chouriço em óleo de mendobi (uma gordura de qualquer coisa), da ração de combate e um cantil de vinho. Era a ceia de Natal que a minha civilização me fornecia para celebrar o nascimento do meu Deus uma semana antes do Ano Novo, o do calendário.

Comem carne de porco dentro das tripas para celebrar o nascimento do vosso profeta? Estranhou o Mamadu. De facto, a tradição era mais variada, incluía bacalhau seco vindo dos mares da Terra Nova, polvo seco, galo capado, cabrito e nalguns casos o que havia. Naquele caso, no posto de sentinela estávamos neste caso: a ceia de Natal era a que havia.

Ofereci metade do chouriço ao Mamadu e um copo de vinho, o que estava na base do cantil. Também havia a tradição de dar presentes aos amigos.

O profeta do Mamadu, o tal comerciante que fugira de Meca, na fuga e como castigo aos que o acusaram de caloteiro, tinha proibido os de Meca de comer carne de porco e beber vinho. Tirara-lhe os vinhos e os petiscos, mas não proibira os presentes! A mim, os meus profetas tinham-me proibido de comer muito. «É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um gordo!» Em minha casa seguiam-se os mandamentos. Podia comer-se tudo o que houvesse e ninguém engordava.

As ordens do tal comerciante cuja fuga inaugurara o calendário do Mamadu intrometiam-se entre a nossa camaradagem, que também era sagrada. E durante uns momentos permanecemos a olhar um para o outro, com chouriço e o cantil de vinho entre nós, o Maomé a fugir, o Cristo nas palhinhas, as estrelas no céu. Um dilema é isto. Os deuses são os criadores de dilemas e nós, os que não nascemos seis dias antes do início do calendário, nem fugimos de Meca, somos quem tem que os resolver.

Carlos Matos Gomes
Carlos Matos Gomes

Written by Carlos Matos Gomes

Born 1946; retired military, historian

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