O melhor dirigente europeu e o pior.

Carlos Matos Gomes
9 min readJan 2, 2024

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O melhor é espanhol

O jornal El País, um grande jornal europeu, publica na edição de 1 de Janeiro de 2024 uma entrevista do escritor Arturo Pérez-Reverte ao programa El Hormiguero (O Formigueiro) da cadeia SER, de televisão, para falar do seu último romance. Uma conjugação de acontecimentos impossível de encontrar em Portugal, um grande jornal (que não há) noticiar a ida de um escritor a uma estação de televisão (de onde a literatura está banida, assim como os escritores) e descrever o que o escritor disse sobre a política do seu país e, no caso, a opinião que tem sobre a lei de amnistia que o primeiro-ministro Pedro Sanchez promoveu para comprar os votos dos independentistas catalães que lhe permitiram formar governo.

Antes de falar de Pedro Sanchez, diz Arturo Perez-Reverte, citado pelo El País: “suponho que irei ao programa falar de livros, mas temo que não somente de livros”. Arturo Pérez-Reverte acabou falando sobre o seu livro e sobre outros temas, entre eles a lei de amnistia e a figura de Pedro Sánchez. Reconheceu ser contra a dita lei, mas que compreende a decisão política do presidente do governo; “Pedro Sánchez é uma personagem fascinante.” Depois definiu Pedro Sánchez como um “aventureiro da política”: “É um pistoleiro, um assassino, um tipo que não olha aos meios “. Segundo o ponto de vista do escritor, o líder do PSOE tem “ o instinto assassino do jogador de xadrez” e, simultaneamente, “não leu um livro em toda a vida “. Apesar disso, Pérez-Reverte reconhece que Sanchez lhe parece fascinante porque tem nas veias as teorias de todos os teóricos do Renascimento: “Tem um instinto político extraordinário. É corajoso, tenaz, atrevido, não tem nenhum tipo de escrúpulos” E conclui: “É o político mais interessante de Espanha e provavelmente da Europa. Outra coisa é saber onde te leva, mas como personagem é um tipo fascinante”. Quanto aos outros políticos considera-os uns “monos” e que Pedro Sánchez apenas cairá “ quando já não tiver nada que vender e cairá sozinho. Parece-me imbatível e estou fascinado com ele.”

Os romancistas nos jornais e nas televisões são perigosos porque dizem estas ‘inconveniências’ que afligem a teologia oficial. Em Portugal, que sofre das condicionantes das sociedades de pequena dimensão, paroquiais e senhoriais, os hereges, mesmo que potenciais, os escritores estão banidos do espaço público. «Reservado o direito de admissão», uma placa que deixou de estar fisicamente colocada à entrada dos estabelecimentos, mas que continua no subconsciente nacional na entrada de todos os estúdios e redações. Locais reservados aos fiéis que se benzem, persignam e recitam o credo do proprietário!

O pior é alemão

Pedro Sanchez é, segundo Pérez-Rivete, de quem sou leitor e admirador, o melhor exemplo de dirigente europeu. Seria muito interessante conhecer quem ele considera o pior. À falta de uma resposta, avanço com a minha proposta. Deixando no caixote do lixo de onde saíram sem que se saiba quem as convocou as figuras risíveis de Ursula von der Leyen e de Josep Borrel, meros bonifrates, a minha escolha recai no chanceler alemão Olaf Scholz. Não o escolho por ele ser mau, que lhe falta qualidade para o ser, mas por ser o tipo de pastor que cumpre a sua função quando existem boas pastagens para o rebanho e não há ameaça de lobos e isto num tempo em que as pastagens estão quase secas e há alcateias por perto. Um tipo de “mono” perigoso, mais ainda na Alemanha, onde os lideres fracos abrem caminho a esquizofrénicos catastróficos que incendeiam a Europa. De Bismark da guerra Franco-Germânica à Tríplice Aliança do Kaiser Guilherme II e a Welpolitik (a conceção germânica da geoestratégia) da Alemanha imperial, na origem da I Grande Guerra e que teve continuidade no Terceiro Reich. Ora, foi à Alemanha que os Estados Unidos entregaram a “defesa da Europa democrática e livre”! Olaf Scholz é, manifestamente, um dirigente de transição e nós, os europeus estamos à mercê da sua visão de funcionário cumpridor e obediente.

O Swedish Institute for European Policy Studies, SIEPS, uma agência independente que realiza investigação e análises sobre política europeia desenvolveu um trabalho da autoria de Katarina Engberg sobre o pensamento oficial e não oficial da Alemanha na nova paisagem geopolítica, dominada pela guerra na Ucrânia, o alargamento de U E e a deslocação do centro de gravidade da Europa para Leste.

Olaf Scholz tem andado às apalpadelas neste ambiente de incertezas. Algumas respostas possíveis da Alemanha foram apresentadas no documento «Estratégia de Segurança Nacional» (Germany’s first National Security Strategy,2) publicado em Junho de 2023. Um documento à imagem de Olaf Scholz, redondo. O governo da Alemanha define como objetivo assegurar a paz, segurança e estabilidade, isto enquanto muitos estados europeus aguardavam respostas esclarecedoras sobre o futuro da Europa. As hesitações do governo alemão podem ser, como têm sido habitual, atribuídas à tradicional relutância da Alemanha do pós-guerra em assumir um papel de liderança na Europa, mas também à incapacidade dos seus governantes de lidar com os complexos problemas resultantes da guerra na Ucrânia e, antes desta, da esquecida agressão contra a Sérvia, do desmantelamento da Jugoslávia em que a Europa se deixou envolver, e de ter agora oito estados do Leste como pretendentes a membros da União Europeia, além da integração da Suécia e da Finlândia na NATO.

A guerra na Ucrânia expôs as fragilidades da Alemanha como potência líder da Europa, e os equívocos em que desde o início assentou o processo que conduziu à criação da União Europeia enquanto espaço político com autonomia no jogo de forças entre grandes atores mundiais. A guerra na Ucrânia revelou que o entendimento Franco-Germânico, que durante décadas foi tido como um pré-requisito para as mais importantes decisões europeias, não passava para os atuais dirigentes da Alemanha de uma falsa colagem e de um casamento de aparências, sem tradução efetiva no estabelecimento de uma política europeia. O eixo franco-alemão, muito publicitado, escondia e escondeu durante anos a opção da Alemanha pela submissão aos Estados Unidos, pelo apoio à sua política para a Ásia Central e para o confronto com a Rússia e a China.

Percebe-se hoje a oposição de chanceleres alemães tão carismáticos como os sociais democratas Willy Brandt ou Helmut Schmidt, ou democratas cristãos como Helmut Khol ou Angela Merkel à constituição de um Exército Europeu, a uma industria militar europeia, a um programa espacial europeu, a uma política europeia para o Médio Oriente e ao apoio mais ou menos encapotado ao programa anglo-americano de extensão da NATO para Leste, em benefício da estratégia dos EUA e violando acordos estabelecidos com Rússia após a implosão da URSS. Hoje percebe-se até o papel da Alemanha, através de Willy Brandt, na normalização do Portugal pós-25 de Novembro de 1975, através de Mário Soares, em que Miterrand, mon ami Miterrand, fez o que pôde para atrair Portugal para a esfera francesa, mas que acabou por fazer o papel de marido enganado.

Apesar de os “quatro grandes” estados-membros da UE, Alemanha, França, Espanha, Itália, se encontrarem na parte ocidental da Europa e representarem dois terços do PIB da UE, e os países da Europa de Leste apenas um décimo, Berlim preferiu seguir as indicações de Washington de privilegiar a frente Leste e de ali ser o seu representante como detentor do poder regional. Para desempenhar esse papel a Alemanha vai gastar 2% do seu PIB, 75,5 mil milhões de euros, em despesas militares a partir de 2024, em grande parte em compras aos Estados Unidos. A liderança por parte da “nova” Alemanha da Europa a partir do Leste, que é a estratégia dos Estados Unidos, levanta questões em Berlim: qual a atitude da Polónia e da Hungria na U E, se a Polónia aspira a um papel de liderança na região, argumentando que sempre esteve certa em relação à Rússia, enquanto a Hungria explora a possibilidade de jogar com as boas relações com a Rússia para obter vantagens junto da UE. Os estados bálticos têm a sua própria orientação, que nunca foi a da Alemanha, mas sim a do guarda-chuva americano. A futura direção política da Eslováquia é incerta. No que diz respeito à Ucrânia, esta terá de decidir se quer aliar-se preferencialmente a um parceiro pouco fiável e com pretensões a parte do seu território, como Polónia, junto às suas fronteiras, ou se prefere um vizinho forte como a Alemanha, mais fiável, embora mais afastado.

Para a estratégia dos Estados Unidos (que a Alemanha parece ter adotado) a Alemanha passou de um estado da frente no combate à Rússia, como foi durante a guerra-fria, para uma área de retaguarda da “defesa do Ocidente”, como um complexo logístico e de trânsito de forças dos Estados Unidos e do Reino Unido, no cenário de invasão russa até Paris, ou a Lisboa que os estrategas criam para justificar despesas militares. Se o papel estratégico que os dirigentes alemães assumem para a Alemanha é o de área de retaguarda dos Estados Unidos na Europa, parece evidente que o papel político que Alemanha, o mais poderoso estado europeu, assume para si em termos militares e, logo, em termos políticos e económicos, é o mesmo que está disposta aceitar para a Europa, o da subalternidade política, económica, militar, estratégica. É o que pudemos esperar da liderança de Olaf Scholz.

A subalternização da Alemanha e da Europa perante os Estados Unidos ficou patente na triste figura de Olaf Scholz de sorriso amarelo, sentado na Sala Oval da Casa Branca, com a habitual lareira sempre acesa, como um menino a ser repreendido, a ouvir o dicktat de Biden de que o gasoduto NordStream2 jamais entraria em funcionamento. Scholz abanou as orelhas e o gasoduto pago pelos alemães foi destruído numa explosão nas águas territoriais da Suécia, um país soberano e candidato a membro da NATO, que recebeu assim a sua primeira lição de obediência democrática!

O papel de hub logístico dos Estados Unidos que a Alemanha aceitou ser exige grandes investimentos em infraestruturas — desde vias de comunicação a cuidados de saúde e ser o pilar da defesa convencional da Europa implica que forças armadas alemãs passarão dos atuais180.000 militares para 200,000, em 2031. A Alemanha é atualmente o segundo maior contribuinte para as despesas da guerra na Ucrânia, logo após os Estados Unidos, num total de 5.4 mil milhões de euros sem incluir a contribuição para o “fundo europeu para a paz” (sic) de 4.7 mil milhões de euros. Olaf Scholz traduziu o que pretende para a Alemanha ao afirmar que o seu governo pretende altera o conceito de indústria de defesa com o objetivo, nas suas palavras, de esta se tornar semelhante à indústria automóvel, com capacidade para entregas sustentáveis ao longo dos tempos. Isto é, Olaf Scholz pretende uma indústria alemã de defesa segundo o modelo do complexo militar-industrial dos Estados Unidos, a que corresponde uma política europeia belicista para criar a permanente e continuada necessidade de novos produtos que rentabilizem os investimentos à custa de guerras por todo o planeta. A submissão de Olaf Scholz levará a Europa a acompanhar os EUA nas suas guerras por todo o mundo. O que já fora indiciado por outro dirigente europeu rastejante, o secretário da NATO, quando incluiu a China nas ameaças à organização! Mas terá impacto nos fundos europeus destinados a programas que aumentem a competitividade das economias dos estados membros da União Europeia, da sua coesão. Isto é, a economia da União Europeia será menos competitiva que a dos EUA e da China e até mesmo do que a Rússia. Haverá menos programas sociais, pior saúde e educação, mais desemprego e mais instabilidade política e social.

O objetivo de Olaf Scholz é uma Alemanha militarizada e belicista como potência líder da Europa, como agente dos Estados Unidos. O cinzento Olaf Scholz é o apagado serviçal que fará o trabalho de preparar a vinda de um incendiário que lance a Europa numa ou em várias fogueiras, ao pé de quem Pedro Sanchez será um simpático ferrabrás como o capitão Alatriste, o herói dos romances de Arturo Perez Reverte, um espadachim a soldo que se movimenta no submundo da decadente corte espanhola do século XVII, entre vielas e tabernas, assassinos como Malatesta, conspiradores como o inquisidor frei Emílio Bocanegra.

É uma Alemanha perigosa — mas conhecida — que Olaf Scholz prepara.

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