Carlos Matos Gomes
6 min readMay 24, 2020

O Harakiri de uma civilização

Uma ideia de explicação para os aviões cheios e os espetáculos a meia casa

Aviões a 100%?! “Expliquem-me, como se eu fosse uma criança”, pedem tantos bons amigos. É o título da crónica de uma jornalista do DN. Outros apontam o seu desapontamento contra a Diretora Geral de Saúde: perdeu toda a credibilidade! Então o vírus mata numa sala de espetáculos e não mata num avião!

Esta é a minha humilde explicação. A decisão faz todo o sentido dentro dos princípios da nossa civilização. É racional. É uma resposta de sobrevivência da nossa velha civilização. Mais, é a decisão que permite responder ao vírus, isto é, pagar os serviços públicos de saúde que lhe responderam e os serviços de segurança social públicos que permitiram a sobrevivência de tantos europeus que viram os seus rendimentos diminuírem ou desapareceram precisamente por os aviões não voarem. E eles, os aviões comerciais, a aviação comercial com todos os serviços associados, aeroportuários, logística, foram desenhados para gerarem lucro (ou riqueza) apenas se os aviões voarem cheios, ou perto disso (+ de 75% da capacidade).

A questão colocada compara a decisão de limitar o número de espetadores de um teatro, por exemplo, com a do pleno de ocupação dos passageiros de um avião. Das distâncias entre utilizadores de um espaço e de outro. Devia ser igual, para ser lógico, na lógica dos que questionam. É certo vivermos numa civilização em que a racionalidade se confunde com igualdade e em que as decisões devem ser neutras e de risco zero. Na realidade necessidades diferentes conduzem a soluções diferentes e existe sempre risco. Os decisores (decisão e responsabilidade são conceitos que a comunicação de massas do politicamente correto foi transformando num anátema) têm de fazer opções entre soluções que nunca são as ideais. São a melhor possível, ou a menos má. Para quem está de fora, os decisores são sempre acusados de não tomarem a decisão ideal, normalmente por quem nunca teve responsabilidade de decidir (outras contas de outro rosário).

A ideia do “ou há moral ou comem todos” é muito atrativa, mas é falsa. A igualdade é uma falácia. Não é um dado absoluto. Nem na morte há igualdade. Nos Estados Unidos há milhares de assassinatos por dia, mas o de John Kennedy não foi mais um. Nem na justa decisão: Roosevelt nunca foi acusado de ter ordenado o lançamento das bombas atómicas em Hirohisma e Nagasaqui e há sérias dúvidas que a sua utilização fosse necessária para atingir o objetivo. Entre tantos exemplos possíveis.

Voltando aos aviões em pleno e aos espetáculos em baixa densidade. Em termos probabilísticos, diminuir a densidade de indivíduos em determinados espaços diminui a probabilidade de contágio. Diminuir a densidade geral é o ideal, do ponto de vista da probabilidade de contágio. Fique em casa! É o confinamento geral. O problema é que além da pandemia do Codiv 19 há outros problemas na sociedade. Existe o “problema” da sociedade: sobreviver! Para sobreviver, a sociedade em que vivemos é obrigada a fazer circular pessoas, para fazer circular dinheiro através de serviços, tantos deles inúteis, ou não essenciais, é certo, mas a sociedade que criámos é também uma sociedade de inutilidades, de desperdício… Passando ao lado da teoria da criação da riqueza, a questão é a de permitir a vida dos indivíduos, comida, vestuário, habitação, energia, lazer. Proporcionar esses bens essenciais à generalidade dos membros de uma sociedade organizada desde há milénios de tal forma que o modo como hoje vivemos é este — de circular é viver, para utilizar um slogan da Prevenção Rodoviária.

O movimento de indivíduos, a mobilidade, a circulação, foram considerados ganhos civilizacionais da maior importância desde os primórdios da nossa civilização. É um fenómeno antigo. As peregrinações já assentavam no desejo do homem de circular, de ir ver o desconhecido. A nossa civilização assenta nesse impulso. Há povos em que os indivíduos nunca saem da sua aldeia durante a vida, e não chegam a conhecê-la toda (os balantas, na Guiné, por exemplo). Nós somos herdeiros e continuadores das civilizações da expansão e da viagem. Construímos a nossa civilização sobre a viagem — as nossas obras de referência são viagens, desde logo a de Ulisses, na Odisseia, por exemplo, ou dos navegadores portugueses d’ «Os Lusíadas», de Camões. Ainda agora estamos a celebrar os 500 anos da viagem de circum-navegação de Magalhães.

A explicação para a abertura do tráfego aéreo é civilizacional (a economia integra o conceito de civilização e determina-a). Os políticos que decidiram os aviões em pleno apenas deram resposta a uma necessidade essencial da civilização dos seus povos. A decisão tem riscos? Tem. Decidir é avaliar vantagens e inconvenientes. A alternativa seria matar um setor que representará cerca de 60% da atividade económica mundial que assenta na “viagem”, segundo os indicadores de diminuição de emissões de CO2. O turismo parece óbvio, mas associado encontra-se a restauração e hotelaria, os transportes, claro, mas associado a estes, a construção automóvel e a construção aeronáutica — fábricas, oficinas, motores, pneus, combustíveis, investigação científica — serviços de reboque, de manutenção, escolas de pilotagem e de condução, controlo aéreo, satélites, bombeiros…. Mas também a construção civil, o segundo maior empregador mundial. E até a manutenção de monumentos, sejam património mundial ou outros, que sem viajantes/visitantes deixariam de ser “rentáveis” e não necessitariam de trabalhadores, incluindo guias e divulgadores, desmoronar-se-iam. Esta é a civilização que criámos. A civilização da viagem. Pode mudar-se radicalmente o paradigma? Parece haver quem acredite que sim e necessite que lhe expliquem que não é fácil e que não é, sobretudo, uma questão de vírus.

Desde a nossa antiguidade construímos esta civilização e não outra. Um dos símbolos da nossa civilização é o Farol de Alexandria, são faróis, marcos para viajantes, até temos uma cidade que se chama Faro, que até tem um aeroporto. Nós, os europeus, transportámos vírus para a América (a tuberculose) com as nossas viagens, trouxemos outros, como o do HIV. As epidemias nunca nos impediram de viajar. A viagem de Marco Polo, ou a Rota da Seda são elementos basilares da nossa civilização de viajantes. Os aviões, os substitutos de caravanas e de esquadras, voam cheios e assim cruzam os espaços? É natural, se toda a atividade da nossa civilização de viajantes é construída para obter lucro com a densidade dos utilizadores — aeroportos, aeronaves, centros comerciais, sistemas de controlo, fornecedores de suprimentos — tudo é, na nossa civilização, planeado para a máxima carga.

Então porque se mantêm restrições de densidade e de contactos noutras atividades? Para diminuir o risco geral (o somatório), agindo em setores não considerados essenciais e para os quais é possível encontrar alternativas à alta densidade, espetáculos, por exemplo, que podem ser repetidos com menor número de espetadores por sessão, ou que podem ser “fruídos” por outros meios (transmissões televisivas, p.ex), ou espaços de lazer (praias, parques) com utilização condicionada. Por isso a solução encontrada na maioria dos países europeus para controlar esta epidemia foi e é muito distinta da lei da selva dos Estados Unidos e do Brasil, de Trump e de Bolsonaro, com laivos de genocídio de faixas da população sem valor de mercado. Titulares de estados de oligarcas, com reduzidos serviços públicos, exceto os de imposição da ordem, assentes na desigualdade, sem laços identitários, logo de solidariedade, e que, no caso do Brasil, aproveitaram a epidemia para impor a lei do boi (a do mais forte) nas palavras do jagunço que faz de ministro do ambiente em Brasília, para justificar a desmatação da Amazónia e a entrega de terrenos aos boieiros da sua casta.

Qual a alternativa aos aviões cheios? Não voar. Não viajar. Criar uma nova civilização que substitua esta.

Estamos disponíveis para fazer o harakiri desta civilização? É do que se trata. No limite, se os aviões não voarem cheios, nenhum dos outros setores que sustentam a civilização em que vivemos terá sequer o mínimo para as lotações a 50%. Não é uma opção agradável, nem igualitária, mas é a que parece estabelecer o melhor compromisso possível. Até à revolução mundial!

Carlos Matos Gomes
Carlos Matos Gomes

Written by Carlos Matos Gomes

Born 1946; retired military, historian

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