O Elogio da Cobardia

Carlos Matos Gomes
10 min readJan 6, 2024

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Elogiar uma qualidade ou uma caraterística da sociedade através do comportamento dos seus elementos é, tem sido, uma forma de os publicistas, sob várias designações, filósofos, pensadores, conselheiros, sociólogos, historiadores, escritores de obras de vários tipos, e agora os ‘cientistas políticos’, transmitirem a sua visão do mundo que os rodeia, dos seres que dominam e que são dominados, da atitude que determina o modo como os seus correligionários e os seus adversários se comportam para atingirem os seus objetivos. Em resumo, os valores de uma dada sociedade.

Numa rápida pesquisa encontramos além do clássico «Elogio da Loucura», de Erasmo, títulos como «Elogio da Divergência», «Elogio da Superficialidade», «Elogio da Felicidade», «Elogios Fúnebres», «Elogio do Silêncio», «Elogio da Morte» e até dois títulos de autores portugueses tão distintos quanto José Vilhena com o sarcástico «Elogio da Nobreza» e o sério «Elogio da Sede» de Tolentino Mendonça. Não faltam, pois, temas, para Elogio. Deve haver nalguma biblioteca um elogio da coragem, mas julgo que não haverá, estou quase certo de que não, um «Elogio à Cobardia». Por mim não o penso fazer, embora o tenha estado a ouvir sob diversas formas nas ações de propaganda que o núcleo duro da força de vendas das empresas de propaganda e manipulação de massas tem vindo a apresentar a propósito da ação de limpeza de Israel contra os palestinianos acantonados na Faixa de Gaza e na Cisjordânia!

Não existindo, que eu conheça, uma obra com esse título, existe, contudo, um discurso dominante de elogio da cobardia que tem origens muto antigas, de tal modo que Dante colocou os cobardes junto dos pusilânimes, aqueles que não têm coragem para reagir, onde sofrem por não terem sabido ou querido decidir entre o bem e o mal, designando-os por ignavos, incapazes de expressarem um pensamento autónomo, ou afrontarem o que esteja instituído como verdade.

A cobardia que mais me motiva a escrever é a cobardia moral e intelectual — é a cultura da cobardia como ‘valor respeitável’ e que é massivamente propagandeada nos grandes meios de comunicação. A cobardia mais repugnante e ignóbil que se apresenta como a grande coragem de ser forte com os fracos e cobarde com os fortes. De ser forte tendo um capanga a proteger-lhe os crimes. Uma atitude que já gangrenou a instituição militar portuguesa e que é visível no núcleo duro dos comentadores recrutados para o efeito no caso do massacre de Israel contra os palestinianos em Gaza e na Cisjordânia. Os mesmos que já constituíam os fiadores do discurso oficial dos Estados Unidos difundido através da NATO, da U E e dos estados aliados para a Ucrânia. O discurso de outros comentadores não me merece na generalidade qualquer comentário: é pura venda de pastorais aos pobres de espirito. O elogio da cobardia feito pela maioria dos militares assenta numa contradição essencial com a definição de guerra feita pelos tratadistas mais conceituados: a guerra é a continuação da política por outros meios — a afirmação é de Clausewitz, a afirmação com a inversão dos termos — a política é a continuação da guerra por outros meios — atribuída a Mao Tse Tung, significa exatamente o mesmo, o que quer dizer que comentar uma ação militar de guerra é em primeiro lugar analisar os objetivos políticos dos contendores, a situação política em que se encontram, uma análise clássica dos estados-maiores — a missão — o que cada um pretende alcançar; o inimigo — quem é, quais os seus objetivos e de que meios dispõe; — o terreno, definido por ambiente, o que inclui o estado psicológico de populações e de combatentes, os fatores morais ;— e, por fim, quais os meios de que dispomos, economia, demografia, capacidade industrial, forças amigas.

O que ouvimos da generalidade dos comentadores militares — generais em boa parte, o que os coloca no patamar da política, pois têm de traduzir as orientações políticas em ações — é uma análise da manobra das forças e da sua eficácia, esquecidos da lição de Clausewitz. O que seria uma falha de abordagem porventura deliberada. Grave na doutrina que os generais difundem ao público em geral, e em geral indefeso, é a normalidade com que apresentam a violação dos mais elementares valores da humanidade como atos normais da guerra quando praticados pelos militares e os políticos de que são adeptos.

A cobardia é definida nos dicionários como uma «ação desleal, aproveitando a fraqueza de outrem». Montaigne considera que «A cobardia é a mãe da crueldade.» São exatamente estas duas ações que configuram a cobardia que assistimos na Palestina e sobre a qual não ouvimos uma palavra dos comentadores militares portugueses, que assim, pelo silêncio, justificam uma guerra de vingança contra uma ação tática de sortida de um grupo cercado — o sempre invocado massacre de 7 de Outubro de 2023, a data fundadora do direito à vingança de Israel sobre a ocupação da Palestina pelos palestinianos (versão oficial da História de Israel e do direito divino à terra prometida pelo seu Deus).

O que está a ser defendido nas opiniões dos generalistas convocados para o coro de propaganda à ação de Israel e dos Estados Unidos são anti valores, é a defesa de atitudes que não só são atentatórias dos direitos de outros, como são contrárias aos valores que os atacantes consideram importantes segundo os seus pontos de vista éticos, morais e até de tradição cultural.

George Orwell, quando em 1972 viu o seu livro «Triunfo dos Porcos» (Animal Farm) censurado pelo Ministério da Informação do Reino Unido, porque prejudicava as relações com a União Soviética, escreveu, manifestando desprezo pelos censores: “As ideias impopulares podem silenciar-se e os factos inconveniente manterem-se na sombra sem necessidade de nenhuma proibição oficial”. E antecipou aquilo a que estamos a assistir hoje, com a cumplicidade dos comentadores militares: “ Em qualquer época, desde que se imponha uma ortodoxia, um conjunto de ideias que é suposto todos os bem pensantes adotarem sem serem questionadas, não é necessário proibir dizer isto, aquilo ou aqueloutro, porque quem quer que desafie a ortodoxia dominante é silenciado com maior eficácia do que com a proibição. Basta nunca ter acesso a uma audiência nos grandes meios de comunicação.”

Barry Brownstein, professor emérito de economia e liderança na Universidade de Baltimore, escreveu um artigo na web do American Institute of Economic Research: “Orwell pinta um retrato do nosso tempo, basta substituir Rússia Soviética por Federação Russa, Estaline e Lenin, por vacinas, mudança de género para adolescentes, energia verde. A Orwell não o surpreendeu o servilismo com que a maior parte da intelectualidade inglesa engoliu e regurgitou as orientações oficiais sobre o modo de tratar aliados e inimigos e nem de declarar que não sentiram “nenhuma pressão direta para falsificar a suas opiniões”. O mesmo têm afirmado os porta-vozes atuais e sem mentir, porque eles são pré-selecionados de acordo com o que é conhecido da sua plasticidade e aderência ao que não deve ser questionado. Sabem ao que vão. São cobardes por convicção heroica.

Orwell observou: “É notório que certos temas não podem discutir-se devido a ‘interesses criados’. O caso mais conhecido (nos anos 40!) já era o dos medicamentos patenteados. Hoje discute-se o caso do medicamento de quatro milhões de euros administrado a duas crianças, segundo se diz por interferência do Presidente da República: ora, em minha opinião devíamos estar a discutir a moral do lucro das farmacêuticas e do sistema que se funda em transformar em negócio a doença, a vida e a morte! Tal como na Palestina devíamos estar a discutir o direito à ocupação de um território, o direito de resistência à ocupação, o direito à cobardia do Estado de Israel, dos seus dirigente e dos seus militares, dos seus cientistas e do povo em geral a massacrar uma minoria por serem detentores de uma desproporção de meios que não permite resposta, por disporem de um aliado que lhes cobre todas as ações. Por disporem de armas nucleares! Estamos a defender o direito do mais forte na Palestina e a negá-lo nas fronteiras da Federação Russa, ou no Iémen!

Isto é, devíamos ter discutido na ocasião, o direito à matança dos atiradores “desportivos” na Quinta da Torrebela, na Azambuja, às portas de Lisboa, que entre 19 e 20 de Dezembro de 2020 abateram a tiro, com as mais modernas armas e os melhores equipamentos óticos, auriculares para não ferirem os tímpanos, e roupa de agasalho da última moda 540 animais numa propriedade totalmente murada e de onde não tinham possibilidade de fuga, empurrados de um lado para o outro para mais facilmente serem alvejados. E devíamos estar agora a discutir se essa não foi uma ação idêntica à que o Estado de Israel e os seus militares estão atualmente a realizar em Gaza e na Cisjordânia. Mas não, aquilo que ouvimos dos comentadores militares são explicações sobre a tática, o alcance das armas, a precisão dos drones das autointituladas Forças de Defesa de Israel (IDF), a maldade do Hamas em utilizar túneis e abrigos enterrados, em vez de colocar os seus postos de comando, os seus armazéns nos terraços das habitações, com um alvo amarelo ou laranja e as coordenadas! Isto é, alguns dos comentadores militares querem convencer os portugueses que os palestinianos se deviam comportar com a mesma ingenuidade e o desconhecimento da perversidade dos caçadores dos veados e dos javalis da reserva da Torrebela! E jamais referem a cobardia dos pilotos que largam as suas bombas sobre objetivos, dos atiradores e artilheiros que os tomam como alvos e que sabem não terem capacidade de defesa e dos seus chefes!

Segundo o historiador Eric Hobsbawm (autor de A Era das Revoluções, a Era do Capital, a Era dos Impérios e a Era dos Extremos), o velho revolucionário Friedrich Engels ficou horrorizado com a explosão de uma bomba republicana irlandesa em Westminster Hall, porque, como velho soldado, afirmava que a guerra se travava contra combatentes e não contra não-combatentes” Desse modo, o tipo mais elevado de valentia requer não só a coragem e a habilidade de matar, mas de o fazer dentro de regras consideradas justas, com equidade de meios e respeito pelas populações. Assim, os que justificam a sua violência a partir da fraqueza do poderio inimigo são cobardes e tão mais cobardes quanto mais desproporcionada for a força que utilizam e a causa pela qual matam: no caso dos dirigentes e militares israelitas por um ato de violência continuada, de uma ditadura infindável que é exercida sobre os palestinianos há mais de setenta anos.

Dos militares portugueses com voz pública esperava eu que destrinçassem o medo e a dúvida da cobardia, porque é possível ter dúvidas sobre a justeza de uma ação e ainda assim dar a cara. Aquilo que a maioria dos comentadores militares estão a validar são os anti valores que os centros de produção de ideologia promovem, os valores do individualismo e do egoísmo que benze como virtude a insensibilidade e desvaloriza em absoluto as consequências dos atos sobre os outros.

A desvalorização dos valores éticos tem maior impacto quando feita por quem pertence a uma organização que detém o poder final, o poder das armas e que devia, até por imposição constitucional, além de deontológica, regular a sua boa utilização, pois foi a sociedade que lhe entregou esse poder, não confundindo cobardia com dever de obediência, nem ação legítima com massacre, nem impunidade com ausência de limites. Existem valores humanos, e a sociedade que surgiu agora designada como o Ocidente Alargado: o velho Ocidente modulado a partir da Europa pelo pensamento grego, latino e pelo cristianismo — tem os seus conceitos. Apesar da dificuldade de definir o Bem e o Mal, parece-me uma boa base considerar o mal o impedimento de uma da comunidade castigar direitos legítimos. Isto é, coartar a Liberdade. E é uma corrupção da liberdade a que estamos a assistir interpretada e avalizada por especialistas. Cobardia institucional é situar-se abaixo dos limites estabelecidos por Santo Agostinho para a guerra justa — pausas humanitárias, respeito pelos mais fracos, respeito pelos lugares sagrados e de refúgio — todas as limitações à cobardia camuflada por violência foram e estão a ser ultrapassadas pelo Estado de Israel com aplauso de alguns militares!

Voltando a Orwell: “as mesmas pessoas que deveriam ser os guardiães da liberdade são aqueles que estão a despreciá-la, tanto na teoria como na prática”. Escreve o professor Barry Brownstein no artigo citado: “ Hoje os movimentos autoritários (os populistas) afirmam que estão a defender a democracia, mas fazem-no através de meios antiliberais (regimes iliberais, como o da Polónia, da Hungria, o de Trump, da Argentina e de Israel). Orwell já antevira estas táticas, escrevendo “existe uma tendência generalizada para argumentar que apenas se pode defender a democracia mediante métodos totalitários.” Este é, claramente, o pensamento do governo de Israel e que está a ser diariamente justificado nos meios de comunicação, muitas vezes com o aplauso dos militares convocados.

A civilização ocidental, a nossa, pode sobreviver ao ataque à liberdade vindo do seu interior? Orwell tinha dúvidas, que partilho: “A liberdade intelectual é um valor sem a qual a nossa cultura ocidental não podia existir como existe. Muitos dos nossos intelectuais estão a afastar-se visivelmente dessa tradição. Aceitam o princípio de que um livro deve publicar-se ou suprimir-se, elogiar-se ou condenar-se, não pelos seus méritos, mas segundo a conveniência política. Alguns que não apoiam estes pontos de vista aceitam-no por pura cobardia. Se a liberdade significa alguma coisa é o direito a dizer ao público em geral o que este não quer ouvir”.

Temos pois duas ordens de cobardes: os que matam por cobardia e os que os defendem também por cobardia, abdicando de valores éticos, aqueles que preferem difundir como verdade as coisas como elas são apresentadas pelos centros de “verdades” para não sofrerem prejuízos e, se possível, obterem benefícios.

Sobre os cobardes felizes escreveu Fernando Pessoa, em «O Livro do Desassossego — Bernardo Soares»: «Feliz o que se assemelha aos brutos, porque é sem esforço que obtém o que a todos nós custa trabalho imposto. Da incapacidade para ser apenas “como o comum dos animais homens” advém a radical e irredutível diferença relativamente aos outros, “pobres diabos sempre com fome”. Que essa diferença seja uma tragédia, e vivida na sombra da dissimulação, é o alto preço a pagar por alguém que, perdulário de renúncias, se fez um poço sem muros, mas com a viscosidade dos muros, o centro de tudo com o nada à roda”.

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Carlos Matos Gomes
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Written by Carlos Matos Gomes

Born 1946; retired military, historian

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