O discurso da normalidade dita democrática: a contra-reforma nazi

Carlos Matos Gomes
5 min readApr 6, 2024

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Asinuns asinum fricat — o burro esfrega o burro

Há novo governo, mas as ideias e os pensamentos são velhíssimos. Do que li e ouvi de Paulo Rangel, o único ministro que tem um discurso público ideológico, o ideólogo do governo entre um grupo de comissionistas a aproveitarem uma oportunidade de negócio fácil e rápido, encontramos três ideias base que fundamentam uma ideologia e as ideias força que ele irá expor junto da “comunidade internacional” como a doutrina professada pelos portugueses, sermonando em nosso nome:

- A primeira, a Ucrânia de Zelenski, do batalhão de Azov e dos nazis que a operação dirigida por Victoria Nuland, a agente da CIA e atual subsecretária dos negócios estrangeiros dos Estados Unidos, colocou no poder com o golpe da Praça Maidan, é uma democracia e defende os nossos valores, os do humanismo Ocidental;

- a segunda ideia força do ministro de Estado que representará Portugal na comunidade internacional, o nosso ícone andante e falante: Israel é uma democracia;

- terceira premissa: André Ventura e a sua organização Chega, de antigos bombistas e colonialistas, de atuais racistas, são democratas embora com um discurso mais direto, mais escancarado do que o do próprio Rangel.

Rangel é o filósofo do novo governo, a fonte ideológica de onde brota um discurso de normalização do que, se fosse apresentado a frio, seria repugnante. Por ocupar essa posição é importante e perigoso, considerarão alguns, por promover a normalização (banalidade) do mal, do conhecido título de Hannah Arendt.

Sair da ratoeira ideológica que os defensores de um novo nazismo (é disto que se trata atualmente no Ocidente pós neoliberalismo, da recriação de um regime de castas privilegiadas que exercem o poder sobre uma massa previamente alienada e predisposta a aceitar a anormalidade como norma) exige um movimento de protesto como o da Reforma Protestante do século XVI, que expôs as taras do catolicismo romano, da luxuria dos papas e da sua corte corrupta.

A venda das bulas que Rangel está a promover junto das classes médias e que Ventura despacha como rifas e raspadinhas aos fornecedores de rebanhos para as claques e gangues deve ser apresentada como uma vigarice perigosa, como uma burla em que os vendedores apresentam excrementos de asnos como Bolas de Berlim!

Se Israel é uma democracia, o regime dos Kmeres Vermelhos do Camboja de Pol Pot era uma versão do festival hippie de Woodstock! Considerar Israel uma democracia é entender que o mundialmente proscrito do regime de apartheid da África do Sul era, afinal, uma caixa de bombons com os chocolates negros embalados ao lado dos bombons de chocolate branco, em boa harmonia e igualdade direitos e dignidade! Considerar que na Ucrânia estão a ser defendidos os valores da civilização cristã ocidental é repetir a classificação da pandemia feita por Bolsonaro, de que se tratava de uma gripezinha, é fazer de cada português e de cada europeu um crente em Bolsonaro e nos bispos da IURD, nos meninos de Deus que lhes batem à porta. É tomarem-nos como imbecis. Apresentar e tratar Ventura como um “político a exercer numa democracia” é o mesmo que considerar as ratazanas que destroem as canalizações e conspurcam as despensas das nossas casas como membros da família! Será dos que o acolherem e ao Rangel.

Não, ao contrário do que, em nome de Portugal, Rangel afirma, Israel não é uma democracia, é um regime racista e genocida com amplo apoio entre os seus beneficiários internos e externos, com uma ideologia de “povo eleito” com direito a eliminar ou dominar todos os outros, inferiores, e a tomar para si os seus bens e terras, porque estes e esta são a sua “terra prometida”. (Já agora, a quem terá o deus dos judeus prometido o deserto da Namíbia, ou os pântanos da Guiné?)

Também, ao contrário do que Rangel afirma em nome dos portugueses, o que está a ser defendido na Ucrânia são os valores do racismo — a russofobia; a intransigência religiosa — perseguição aos ortodoxos russos; a corrupção: a venda das terras e bens públicos a negociantes internacionais e a oligarcas nacionais; o sacrifício dos inocentes mobilizados para uma guerra sem possibilidade de vitória; o desprezo pelos cidadãos que não são ouvidos para legitimarem as decisões da clique no poder, em nome do “patriotismo” que dispensa ouvir e castiga os que não aceitam as imposições, ou os mobiliza para um serviço militar obrigatório de carne para canhão ao serviço de uma potência estrangeiro e da sua estratégia de poder planetário. Parafraseando Almada Negreiros (se o Dantas é português eu quero ser espanhol!), se na Ucrânia e em Israel se estão a defender os valores do ocidente, eu quero uma bússola que altere a rosa-dos-ventos, um sino com badalo para anunciar estes torquemadas esganiçados e mais ou menos esbracejantes! O meu Ocidente é o da frase do Padre António Vieira: “Entre todas as injustiças, nenhumas clamam tanto ao Céu como as que tiram a liberdade aos que nasceram livres e as que não pagam o suor aos que trabalham.”

Ao contrário do que Rangel afirma e vai afirmar em nome de Portugal, Ventura não é um democrata, nem sequer é alguém que respeite valores essenciais da dignidade dos ser humano, desde logo o que consta da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de todos os seres humanos terem igualdade dignidade.

Rangel, o ideólogo deste governo, o melífluo cardeal que defende a ordem aristocrática, o poder absoluto, arregimenta e serve quem lhe encontra utilidade. Terá os seus correligionários e os seus seguidores. Terá em Nentanyahou e em Zelenski os seus santos inspiradores, mas deledirei, citando uma máxima latina: Asinus asinum fricat — o burro esfrega o burro. Entretanto, enquanto os burros se esfregam o resto do governo trata da vidinha.

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Carlos Matos Gomes
Carlos Matos Gomes

Written by Carlos Matos Gomes

Born 1946; retired military, historian

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