Carlos Matos Gomes
3 min readNov 15, 2022

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O Diabo desocupado e a revisão Constitucional

Entre a vermelhinha e a vigarice do vigésimo premiado

Um dos meus tios-avôs era integralista e anticlerical (devia ser o único, mas era assim). Defendia a ideia do Deus ausente. Uma entidade que tinha criado o mundo e deixado os seres da sua criação por conta própria. Travava discussões épicas como padre da freguesia, no Concelho de Vila de Rei. Como não acreditava na intervenção de Deus na vida dos homens, também não acreditava na atividade do Diabo a tentá-los. Estas duas descrenças retiravam utilidade ao padre, que o interrogou: Senhor Luís, o que faz o Diabo, se não tem nada que fazer? — Olhe, senhor padre, no Verão abre o cu e apanha moscas!

Desculpem a rudeza da linguagem — beirã, neste caso — mas foi o que me veio à lembrança quando ouvi uns anunciantes de maravilhas a troco do voto declararem que o grande problema da Nação Portuguesa era a Revisão Constitucional! Isto é, esses “meninos de Deus” estão como o diabo em situação de desemprego de longa duração, mas neste caso, em vez de apanharem moscas, espalham-nas!

As pessoas comuns são entrevistadas nos supermercados e lamentam-se do preço dos produtos essenciais, dos meses de demasiados dias para os salários, do custo dos combustíveis, da eletricidade, do gás, da inflação, do medo que a guerra ainda piore a situação, falam do mau atendimento nos serviços públicos, na ganância das empresa privadas, na desumanidade com que são tratados os idosos, os deficientes e, perante este panorama, umas criaturas de sorriso que vai do queixo ao umbigo, propõem aos portugueses uma Revisão Constitucional! A panaceia universal. Os artigos a rever serão tomados como os comprimidos de farinha para aliviar as comichões: como placebos!

O que pensam essas aves canoras do valor do Euro relativamente à moeda de troca mundial, o dólar, uma relação que determina o preço de todos os produtos, bens e serviços no comércio? Zero! (são moscas). O que pensam esses feirantes de promessas da política externa da União Europeia e da sua relação com os vários grandes espaços do mundo, com a Ásia, com a Africa, com a América, porque é essa relação que determina o que a Europa vende e compra, o rendimento das famílias e o seu bem-estar? O que pensam esses revisionistas de livrinho debaixo do braço da política portuguesa para o Mar e para a exploração dos recursos da plataforma marítima, porque é aí que se encontra boa parte do nosso futuro? Nada, estão a apanhar ou a espalhar moscas. O que pensam esses batoteiros de vermelhinha (embora de fato e gravata) da energia nuclear? E o que pensam sobre a educação e o ensino mais exigentes e de melhor qualidade? E o que pensam sobre ordenamento do território, da criação de riqueza local que não seja fundada numa atividade tão sujeita a percalços quanto o turismo? E o que pensam da política fiscal da União Europeia sobre paraísos fiscais?

Sobre estas e outras questões, que exigem algum estudo, que obrigam a compromissos, a confrontar corporações, isto é, que obrigam a ser sério, sobre seriedade, os proponentes da Revisão aos costumes dizem nada! O que lhes interessa é a chicana, a venda de bacalhau a pataco, o chinfrim, a demagogia.

A revisão constitucional é hoje um artigo apregoado por vigaristas que anunciam vigésimos da lotaria premiados. A Revisão Constitucional é hoje um artigo que vale menos que uma raspadinha com os números falsificados! Uma revisão constitucional faz hoje tanto sentido como discutir um perfume quando o que falta é água e sabão para tomar banho e lavar a roupa! Ou então essa gente só está interessada em disfarçar o seu fedor. É necessário dar-lhes banho!

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