Morte à Inteligência em Kiev
A vitória nas eleições da Eslováquia de um político que desafina do coro da União Europeia sobre a guerra na Ucrânia revelou os fedores e as nódoas das roupas interiores da apregoada democracia que a Europa diz defender. Os perfumes e os desodorizantes das senhoras e dos senhores de Bruxelas e Frankfurt bem tentam abafar o cheiro a podre que sai dos sovacos e coxas de uma democracia a uma só voz, que toma banho sem água, mas canta como se estivesse num duche, onde há uma verdade oficial e não há lugar para interrogações. Os ministros europeus, reunidos em conclave em Kiev em 2 de Outubro, após mais uma viagem de comboio (devem ter direito a passagem com desconto para passageiros frequentes — commuters, em inglês, que é a nossa língua de negócios), já estão a construir nas suas oficinas de manipulação a cruz onde o herege eslovaco vai ser crucificado, a acender-lhe uma fogueira, ou a preparar-lhe uma primavera democrata e a garantir aos seus cidadãos: Estamos unidos, Ucrânia ou Morte! Ou: Morte à Liberdade e à Inteligência.
Em 12 de Outubro de 1936, faz agora oitenta e sete anos, que durante o ato de abertura do ano letivo no salão nobre da Universidade de Salamanca, em resposta a um dos oradores que criticou a Catalunha e País Basco, qualificando-os de “anti Espanha”, o general franquista Millán-Astray terá gritado: “Viva la muerte!” Uma das descrições da cena conta que o filósofo Miguel de Unamuno, o reitor da universidade, até ali em silêncio, se levantou e pronunciou um discurso onde surgem as frases dramáticas e que ficaram para a História como verdadeiras: “Este é o templo da inteligência e eu sou o seu sumo-sacerdote. Vencer não é convencer. Para convencer há que persuadir e para persuadir necessitaríeis de algo que vos falta: razão e direito na luta.” Millán-Astray terá respondido «Morra a intelectualidade traidora! Viva a morte!» Segundo alguns historiadores terá ainda gritado: “Morte à inteligência!
A reunião de Kiev — que se realiza como um show off para demonstrar aos europeus simples de espírito que tudo está bem e em ordem, que as tropas democráticas da Europa não deixam sair ninguém da forma e, principalmente, os contribuintes europeus não deixarão de pagar os negócios que se fazem a coberto dos obuses, Leopards e dos drones!
O que está em causa na reunião dos ministros dos negócios estrangeiros da UE não é o apoio da União Europeia à guerra contra a Rússia encomendada ao regime de Zelenski — essa é uma decisão tomada e de consequências ainda não contabilizadas, nem interiorizadas, é uma amputação sem possibilidade de regeneração — mas sim uma questão de essência civilizacional: o direito dos povos e dos estados decidirem dos seus interesses, de se expressarem democraticamente e de as suas decisões serem respeitadas pela comunidade internacional de que tanto se fala quando convém! As ameaças mais ou menos explícitas à Eslováquia — veremos o que vai acontecer, afirmou Borrell, o mastodonte na sala dos cristais, são uma ameaça a todos os democratas. São uma ofensa à inteligência e à razão. São uma repetição do grito de Millán-Astray, de viva a morte, mesmo que seja a morte dos valores pelos quais vale a pena morrer, principalmente esses!
A reunião de Kiev é um velório onde não haverá ninguém que lembre aos gatos pingados que já Platão, em Fedra, considerava que a diferença entre o filósofo (o que pensa) e o tirano estava justamente na visão completa e livre das ideias do primeiro em oposição à visão condicionada, à cegueira, do segundo. Em Ensaio sobre a Cegueira e Ensaio sobre a Lucidez Saramago expressa a mesma ideia. A nossa palavra “ideia” tem sua origem grego idea, que possui o radical do verbo “ver”. O grupo da UE em atividade missionária em Kiev quer-nos cegos e sossegados, com a cabeça vazia, catapléticos!