Kaputt
Kaputt é uma palavra alemã que significa acabado, destroçado. Kaputt foi o título escolhido por Curzio Malaparte, o pseudónimo de um italiano filho de uma italiana e de um alemão, para uma das suas obras. Nela o jornalista escritor descreve a sua passagem pelos campos de batalha da II Guerra Mundial e transmite o estado geral de uma Europa em guerra e em ruínas materiais e de valores.
Porque julgo estarem os dirigentes europeus a chamar por uma terceira, interessei-me por revisitar essa memória escrita das atrocidades então cometidas.
Parece-me que os dirigentes europeus e uma parte significativa dos que aqui vivem esqueceram ou ignoram, ou desprezam esses horrores e estão esgazeados e eufóricos a promover a sua repetição. Entendo que devemos lembrar esse período em que a Europa também passava por uma crise de enormes proporções.
O livro Kaputt expressa, entre várias abordagens, uma forma de relatar um conflito. Como é apresentado um conflito aos leitores, aos espetadores, aos cidadãos?
Ao contrário da abordagem dos atuais repórteres, centrados na criação de emoções e engajados numa dada catequização, em Kaputt não encontramos uma descrição exaustiva dos acontecimentos bélicos, o que hoje um vulgar videojogo faz com mais realismo do que uma reportagem.
Mais do que dar a conhecer o campo de batalha, o cenário, Curzio Malaparte tem como principal propósito dar a conhecer o comportamento dos envolvidos direta ou indiretamente no conflito, políticos, militares, prisioneiros, as suas motivações, o que se encontra a montante das paisagens devastadas e dos rostos dos sofredores.
Em Kaputt o campo de batalha funcionava como um tabuleiro de xadrez onde as peças se movimentavam. Eram esses movimentos que interessavam a Malaparte perceber e transmitir e não o de provocar adesões a uma narrativa. Nas narrativas de hoje, nas televisões, o campo de batalha é apresentado como um gerador de reações descontextualizadas: Vítimas e carrascos. Bons e Maus.
Curzio Malaparte abre a obra contextualizando-a no espaço e no tempo. Em 1941, quando se iniciou a ofensiva alemã contra as tropas ucranianas, Malaparte foi enviado para a frente ucraniana como correspondente de guerra do jornal italiano Corriere della Sera. É neste ambiente que Curzio Malaparte vai iniciar a escrita de Il Volga nasce in Europa. Hoje os manipuladores falsificam a geografia: a Ucrânia é Europa, a Rússia não!
Nas palavras da escritora canadiana Margareth Atwood, Kaputt trás à superfície “manifestações de fanatismo ideológico, racismo e de ódio à vida. Valores distorcidos, mascarados de pureza espiritual nos seus aspetos mais íntimos e vergonhosos.”
Hoje a guerra está de novo na mesma região da Europa, com os seus atores praticando as mesmas atrocidades, numa disputa por espaço e poder económico e apresentando o fanatismo ideológico, o racismo como valores defensáveis, porque são os dos “nossos servos”, os do regime de Zelenski.
O que está a acontecer na Ucrânia já não é, se alguma vez foi, uma guerra entre russos e ucranianos, como pretendem os manipuladores de opiniões que nós, os clientes da sua informação, acreditemos, mas um confronto maior entre a Grande Rússia e a aliança EUA/NATO .
Infelizmente, em minha opinião, não existe hoje nenhum escritor ou jornalista ocidental que ouse sair das verdades oficiais: uma invasão da pacífica Ucrânia, súbita, sem causa nem razão da Rússia e a defesa tenaz de um regime democrático, de liberdade e respeito pelos direitos humanos chefiado pelo heroico Zelenski!
Não haverá um Curzio Malaparte que escreva um Kaputt desta guerra para expor as raízes do Mal.
Hoje Curzio Malaparte seria acusado hoje de comunista, agente da KGB e, no mínimo, de contaminado pelas ideias de Marx e Lenin. Seria nazi, putinista, ou comunista. Palavras vazias hoje usadas para desqualificar quem não defenda que a Ucrânia de Zelenski deve ser livre de servir de base nuclear contra a Rússia, de eliminar as minorias russas e de os seus oligarcas substituírem os oligarcas russos e fazerem os negócios com os oligarcas americanos.
Acreditei que relendo Kaputt poderia compreender o intencional caos que foi promovido no Leste europeu, apesar de o mundo ser outro. Análises e diatribes proliferam nas redes sociais, alimentadas pela volumosa e desproporcional cobertura dos jornais e Tvs, que ampliam e distorcem os fatos de acordo com a verdade oficial. Sabemos que a primeira-dama Olena Zelenska ofereceu um chá a Ursula Van Den Leyen após esta ter visitado os massacres de Bucha., mas não sabemos quem provocou o massacre de Bucha, nem se ele ocorreu, nem em que circunstâncias.
A cobertura dos jornalistas de hoje, funcionários das máquinas de produção ideológica, tornou-se cansativamente alarmista, provinciana e tendenciosa. Tudo são «Breaking News». Em Portugal recebemos formatação da CNN de Queluz e da Sky News de Paço de Arcos. Os novos Curzio Malaparte indígenas são o Milhazes e o Rogeiro, o Portas, uns e umas doutorados/as avulso!
A informação é naturalmente tendenciosa, dentro do padrão estabelecido desde a guerra fria que dividiu o planeta numa parte ocidental, cristã e democrática, agora com a cooptação da Ucrânia e numa parte oriental, formada por países comunistas, ateus e ditatoriais, onde se encontra a Rússia, e China. Bons e Maus.
Em Kaputt há o desfile de um verdadeiro museu de horrores, mas Curzio Malaparte não só testemunhou os escombros e os destroços, “com nuvens de moscas gordas e preguiçosas, de asas douradas, zunindo sobre cadáveres e ruínas”, ele seguiu os tanques através da Polônia, Romênia, Finlândia, Alemanha, a antiga Iugoslávia, Rússia e Ucrânia e assistiu às execuções. Estas não lhe foram apresentadas com os mortos já prontos a serem fotografados.
Quando Malaparte se encontrava na Ucrânia assistiu a uma execução de prisioneiros pelos soldados alemães. Descreveu-a: «Quando os Judeus começaram a rarear, começaram a enforcar os camponeses. Penduravam-nos pelo pescoço ou pelos pés nos ramos das árvores, nas pracetas das aldeias, em redor do pedestal vazio onde, alguns dias antes, se elevava a estátua de gesso de Lenine ou de Estaline, penduravam-nos ao lado dos corpos dos judeus desbotados pela chuva, os quais oscilavam no céu negro há dias e dias, perto dos cães dos judeus pendurados no mesmo ramo dos donos. — Ah, cães judeus! Die judischen Hunde! — diziam, ao passar, os soldados alemães.» (p.255)
«Em seguida voltou-se para o grupo da direita, o dos aprovados, olhando para os camaradas com ar trocista, voltou a contá-los rapidamente, disse “trinta e um”, fez sinal com a mão ao pelotão de SS que esperava ao fundo do pátio e depois ordenou: — Meia volta, em frente, marche! — Os prisioneiros deram meia volta e puseram-se em marcha batendo com os pés na lama: quando ficaram de face voltada para o muro de vedação do pátio, o Feldwebel ordenou: — Halt! — E, voltando-se para os SS, mandou: Fogo!»
A atmosfera carregada de atrocidades, sangue e morte acompanha passo a passo o leitor. Diferente do que ocorre hoje nas ruas das cidades ucranianas invadidas pelos russos, onde os dirigentes ucranianos, após as retiradas, servem os massacres já prontos a serem filmados aos jornalistas amigos.
Curzio Malaparte transitou entre as tropas germânicas e russas, cobriu batalhas, frequentou salões burgueses onde oficiais nazis, diplomatas e altos funcionários se embebedavam juntos com colaboracionistas, na comemoração das suas vitórias. Passou por cidades e vilas arrasadas, presenciou a fome, o terror e a degradação da população. O seu biógrafo definiu-o como um “anarquista de direita, ou anarco-fascista”. Podia ser qualquer coisa, menos um homem de esquerda, mas deixou a lição da dúvida sobre as realidades montadas na guerra e não se resignou a ser um mero propagandista de uma das partes.
Esta guerra não terá como memória o seu Kaputt. Talvez um videojogo com a vitória garantida do vendedor da consola.