Israel — Um Estado Rottwiller
A análise do comportamento de Israel na estratégia dos Estados Unidos tem de partir da caraterização da relação do Estado de Israel com os Estados Unidos. É essa relação que determina as ações de Israel e permite ler os passos que os Estados Unidos dão para atingirem o seu objetivo decisivo e vital de manterem a supremacia mundial. É à luz da questão de hegemonia do sistema mundial, assente na força, que permite emitir o dólar, a moeda de troca mundial sem qualquer valor de referência, a não ser as rotativas da Reserva Federal Americana, que as ações dos atores no Médio Oriente devem ser analisadas.
Os comentadores avocados pelos grandes aparelhos de comunicação centraram as suas arengas em dois pontos: o tipo de ataque do Irão, com aviso prévio, com meios facilmente interceptáveis e de modo a não causar grandes danos pessoais e o tipo de reação de Israel. No fundo, limitaram-se a replicar o que os painéis de comentadores do futebol fazem ao apreciar o “jogo do dia”. A questão, no entanto, é a existência de um campeonato e a estratégia que cada equipa montou para o disputar, quais os investimentos e quais os objetivos dos donos dos clubes. Existem, como sabemos, clubes de primeira e clubes filiais. Israel é um clube filial. Tem, com certeza objetivos próprios, mas o seu papel é o de servir de guarda do proprietário. A relação entre ambos é do mesmo tipo da de um cão rottweiller com o seu dono,
O rottweiller é um tipo de cão desenvolvido na Alemanha, julga-se que descendente de cães romanos e utilizado como cão de guarda. No início do século XX, quando foram pesquisadas diversas raças para a função policial, o rottweiler demonstrou ser extraordinariamente adequado e estas tarefas. Quando não são educados de modo a reconhecer quem manda, podem ser agressivos e necessitar de reeducação. Não parece que seja o caso de Israel, pese embora as justificações para os crimes de Israel atribuídas à fuga à justiça de Netanyahou, ou ao domínio do grupo ultrasionista que domina o governo e tem por objetivo a criação do Grande Israel e a eliminação dos palestinianos, considerados animais.
Na realidade a ação de Israel segue o guião da estratégia dos Estados Unidos para a região e que é conhecida. O essencial desta estratégia pode ser lida em duas obras produzidas por personalidades que desempenharam funções de alta decisão nas administrações americanas e que expõem as linhas mestras da ação dos Estados Unidos. O primeiro é o livro The Grand Chessboard American Primacy and Its Geostrategic Imperatives, O Grande tabuleiro de xadrez. A supremacia americana e as suas implicações estratégicas, de Zbigniew Brzenski, que foi Conselheiro Nacional de Segurança da administração de Jimmy Carter, no qual expõe a importância da região que designou como Eurásia e que explica a decisão de atacar a Rússia a partir da Ucrânia. O segundo livro, menos conhecido, Winning Modern Wars — The Clark Critique, escrito por Wesley Clark, um general vedeta, de quatro estrelas do Exército dos EUA e ex-comandante supremo aliado da OTAN na Europa de 1997 a 2000. Diretor do conselho do Atlantic Council, bem como presidente e CEO da Wesley K. Clark and Associates, uma empresa de consultoria estratégica e que chegou a ser candidato à presidência dos Estados Unidos. Ele relata o primeiro contacto com a administração de Bush Jr, no seu regresso aos Estados Unidos e ao Departamento de Defesa, o que lhe foi dito a 20 de setembro de 2001, apenas nove dias depois dos ataques às Torres Gémeas. A administração Bush (Dick Cheney e Donald Rumsfeld) tinha concebido um plano para atacar sete países de maioria muçulmana após os ataques de 11 de setembro. O plano incluía ações militares contra Iraque, Síria, Líbano, Líbia, Irão, Somália e Sudão, sendo o Iraque o primeiro alvo. Três semanas depois da conversa informal, o mesmo oficial entregou a Clark um memorando a descrever como os EUA iriam derrubar sete países em cinco anos. “Começava no Iraque, e depois Síria, Líbano, Líbia, Somália, Sudão e, a terminar, Irão”.
No livro referido, sob a forma de conselhos ao presidente dos EUA, Wesley Clark explicita a estratégia a seguir: “O que o presidente dos EUA necessita de saber.” Linha de partida: O pós guerra fria terminou. Vivemos uma nova era geopolítica que necessita de uma nova visão e a renovação dos fundamentos do poder americano. O Sistema Internacional depende em exclusivo do sucesso dos Estados Unidos na nova era.
O primeiro passo na renovação dos EUA é encarar a realidade. Os Estados Unidos estão a enfrentar um grupo emergente (BRICS), cada vez mais alinhado, de potências opostas à ordem internacional baseada em regras (sic) e liderada pelos EUA. A Rússia, alinhada com a China, e agora ao lado do Irão e apoiada pela Coreia do Norte, está no centro de uma manobra para destruir a preeminência americana, redistribuir o poder global e dividir o mundo em esferas de influência. Essas potências estão a cooperar cada vez mais. Como o presidente chinês Xi Jinping declarou ao despedir-se do presidente russo Vladimir Putin, em março de 2023, juntos estão a promover “mudanças” que “não víamos há cem anos”. Essas mudanças referem-se ao desmantelamento da ordem global (sic). A invasão da Ucrânia pela Rússia e a intenção da China para tomar Taiwan são apenas dois esforços entre muitos desses atores que visam reduzir a influência dos EUA e mitigar as leis, regras e restrições do atual sistema internacional.
Os potenciais adversários dos EUA estão cada vez mais decididos a usar a força. A invasão em larga escala da Rússia na Ucrânia em 2022 foi um choque (embora não devesse ter sido). Agora, os países europeus temem que, se for bem-sucedida na Ucrânia, a Rússia possa avançar mover contra a Moldávia, Geórgia, Cazaquistão, Polónia ou os estados bálticos. A China, embora ainda cautelosa e calculista, investiu num grande poder militar e está a utilizá-lo para intimidar Taiwan. O Irão continua a procurar a destruição de Israel e está aumentar o seu poderio para adquirir a hegemonia regional. As armas nucleares importam novamente. Putin e os seus aliados têm repetidamente, e com sucesso, ameaçado o uso de armas nucleares para impedir a assistência criticamente necessária dos EUA e do Ocidente à Ucrânia. O medo aberto de confronto com uma potência nuclear prejudica a credibilidade dos EUA em todo o mundo. A Rússia e a China estão a ampliar e modernizar os seus arsenais de armas nucleares, incluindo armas nucleares estratégicas que podem atingir os Estados Unidos. A Rússia produziu uma nova geração de armas nucleares táticas mais facilmente utilizáveis e os meios para as lançar, e Putin fala como se a Rússia tivesse alcançado a superioridade nuclear estratégica.
As sanções económicas dos EUA revelaram ser inadequadas e, às vezes, até contraproducentes. As sanções dos EUA para cortar os fluxos tecnológicos e financeiros para a Rússia após sua invasão da Ucrânia em 2022 não se mostraram eficazes em interromper o uso da força pela Rússia. Tecnologia como chips e máquinas-ferramentas vitais para a indústria militar da Rússia difundiu-se entre um regime de sanções multilaterais que tem sido difícil de aplicar e sujeito a evasão. A Rússia ainda está a exportar petróleo e algum gás, e a obter moeda forte através de uma rede de contrabando, manifestos falsos e mistura de produtos petrolíferos para disfarçar a sua origem. Mas mesmo sem serem totalmente eficazes, essas sanções alienaram muitos países que estavam em cima do muro sobre o conflito na Ucrânia e incentivaram mais esforços para minar o sistema financeiro global dominado pelos EUA.
Os esforços dos EUA para cortejar e conquistar o Sul Global não estão a obter sucesso. Os poderes atrativos do sistema democrático dos Estados Unidos diminuíram com o sucesso do modelo autoritário da China, o surgimento de regimes autoritários em países como a Turquia e o Egito e os problemas óbvios que a governo dos EUA enfrenta em casa. Em África, os esforços dos EUA para pregar a democracia e os direitos humanos são às vezes vistos como uma forma de “imperialismo cultural” e contrastados com as ofertas de ajuda e capital da China sem interferência em assuntos internos.
No Médio Oriente, o Irão criou um arco de milícias e outras forças opostas aos Estados Unidos e muitos atores parecem ver as declarações do governo dos EUA de que não procura a escalada com Teerão como reflexo da fraqueza dos EUA. Em todo o Sul Global, muitos líderes que avaliam o apoio vacilante dos Estados Unidos à Ucrânia parecem ter decidido que a Rússia é a potência mais forte.
A estratégia americana deve assentar entre outros na renovação do seu poder e incluir o fortalecimento da dissuasão nuclear dos EUA e todos os sistemas auxiliares que lhe dão credibilidade. Os líderes dos EUA devem reexaminar a necessidade de sistemas táticos e de teatro, bem como a modernização das ogivas. A dissuasão nuclear dos EUA deve ser uma pré-condição para a negociações estratégicas sobre armas nucleares com a Rússia e a China.
Quanto à Ucrânia o apoio americano deve ser o necessário para expulsar as forças russas do seu território. A China está a observar como os Estados Unidos e outros países respondem a esse desafio. Washington deve encorajar aliados e parceiros que compram armas dos EUA, como sistemas ATACMS e Patriot, a adiar a aceitação e, em vez disso, doar seus sistemas para a Ucrânia conforme necessário para derrotar a agressão russa lá.
O governo dos EUA deve concentrar a construção naval para dissuadir a China, e melhorar as capacidades estratégicas de defesa nuclear dos EUA. Procurar oportunidades como a exploração de petróleo no Mar da China Meridional para repelir economicamente o expansionismo chinês e manter as políticas económicas de investimento robusto em infraestruturas no Estados Unidos, evitando a posse de tecnologias-chave na China. Além disso, Washington deve dar maior prioridade à proteção do dólar como o principal meio de comércio internacional e reserva de valor.
Quanto ao Irão, que está na ordem do dia, Clark expõe a estratégia em vigor: forçar os governantes do Irão a escolher entre a sua luta pela hegemonia regional e a sobrevivência do regime. O governo dos EUA deve alterar a sua política em relação ao Irão de “relutância em escalar” para “acabar com o Eixo da Resistência “, incluindo o apoio de Teerão aos Houthis no Iémen. O governo dos EUA deve alertar o Irão de que, a menos que o Eixo da Resistência seja desmantelado e as ameaças terroristas e nucleares do Irão cessem, os Estados Unidos e os seus aliados usarão todos os meios necessários para efetuar mudanças no Irão. Ataques militares dos EUA dentro do Irão que coloquem em risco os ativos mais valorizados pelo regime, começando com instalações de produção de drones e mísseis, não devem ser excluídos da consideração se o Irão atacar forças dos EUA.
É quanto a este ponto da estratégia de impedir que o Irão se torne uma potência regional no Medio Oriente, ameaçando o papel que tem sido desempenhado por Israel, como rottwiller dos EUA que vai ser decidida a “retaliação de Israel”. Ou os EUA entendem que já estão em condições de aniquilar o poderio militar-industrial do Irão e provocar uma mudança de regime em Teerão e nesse caso a ação de Israel será violenta e preparatória de um ataque principal, ou os EUA entendem que ainda não estão reunidas as condições para essa operação e a retaliação de Israel será destinada a “amolecer” a resistência de Teerão a um futuro ataque decisivo. Decisivo é, no entanto, uma demonstração de força dos Estados Unidos, que convença os estados na região de que ainda são eles os mestres do jogo. Certo é, também, que em qualquer momento ocorrerá um confronto decisivo entre os Estados Unidos e o Irão para impedir este de disputar a hegemonia de Israel como potencia regional e de se tornar uma potencia nuclear. Seria mais um Estado dos BRICS a aceder a essa condição, juntamente com a Rússia, a China, a Índia.
Os Estados Unidos, como referiu Wesley Clark, têm de se mostrar eficazes na luta contra os aliados de Teerão, o Hamas, os Hezbollah, os Houthis, que é o trabalho de rottwiller a cargo de Israel e também manterem a ocupação de parte da Síria, como o estão a fazer à margem de qualquer justificação que não seja o poder da força.
A afirmação da administração Biden, de que os Estados Unidos não se iriam envolver na retaliação de Israel é pura retórica, todos os meios utilizados por Israel são americanos, os aviões, as armas, o sistemas de comando, controlo, comunicações, informação por satélite, localização de alvos são americanos e são também os Estados Unidos que fornecem a reserva de emergência com duas esquadras na região.
A eficácia da retaliação de Israel dependerá muito das capacidades de defesa antiaérea que Teerão tenha entretanto desenvolvido para proteger as suas infraestruturas criticas. Uma informação que com certeza os Estados Unidos dispõem.
Por fim, na distribuição dos custos das duas guerras, a de Israel será paga pelos americanos, com emissão de moeda que criará um efeito de bola de neve de inflação repercutido pelos estados do dólar, os europeus em particular. A guerra na Ucrânia será paga diretamente pelos europeus, com fundos retirados dos apoios sociais e do investimento produtivo.
As ações no Médio Oriente e na Ucrânia dependem da análise da situação que for feita em Washington. Existe um guião. Falta a fita do tempo. Somos todos, os cidadãos das democracias ocidentais, democraticamente impotentes para intervir no nosso futuro.
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