Carlos Matos Gomes
4 min readOct 28, 2019

Governão, comunicação, infantilização

Agora a moda é criticar o governo por ser quase uma companhia do Exército. Setenta governantes. Parece, de facto, um exagero, mas foram exatamente os mesmos que atacam o número de governantes os que o motivaram e justificam a quase multidão.

Aos poucos, por mero populismo e política rasteira, os políticos, quando na oposição, os jornalistas avençados e desmiolados diariamente, exigiram “responsabilidades políticas” aos membros do governo por todos os acontecimentos. Cai uma ponte, falta água numa freguesia, desaba um telhado numa escola, uma urgência fecha por falta de um médico de baixa, um sinal de trânsito mal colocado, uma praga de piolhos, uma ETAR sopra maus odores, uma estrada esburacada, uma intoxicação alimentar, um deslizamento de terras, um incêndio, uma inundação, um afogamento e levanta-se um coro de carpideiras a exigir a cabeça de um ministro, de um secretário de Estado. Responsabilidades políticas! Responsabilidades funcionais é que não. Faltam meios. Faltam sempre meios para cumprir as tarefas. E se faltam meios a culpa é do ministro. Sai o ministro.

Para os políticos na oposição e para a comunicação dita social, o Estado é o governo. O povo embarcou nesta mistificação. Não há serviços, nem responsáveis por serviços. O ministro da defesa tem de fazer quartos de sentinela, o da saúde tem de entrar nas escalas de urgências das salas de partos, o da educação tem de tropicar pelos recreios a substituir contínuos ou auxiliares de ação educativa, o do interior tem de andar de agulheta a apagar fogos no Verão e de barco de borracha a desentupir boeiros no Inverno. Um funcionário falta ao serviço, a culpa é do ministro que não descobriu que ele estava de burnout, isto é, metera um atestado e se marimbara para os ditos utentes.

No tempo do rei Luís de França o Estado era ele. Hoje, os adeptos da responsabilidade política, do então a culpa fica solteira, ninguém se demite? Onde estava o primeiro-ministro na data do desastre? De férias! O gajo estava de férias quando havia um desastre? Rua. O primeiro-ministro tem de estar no local do desastre, assim como os ministros, e os secretários de Estado, isto porque o presidente já lá está e as televisões. Quem não está é quem devia estar, o diretor do serviço, o inspetor, o coordenador, o técnico responsável.

Se o governo fosse a administração de uma fábrica de têxteis, de cada vez que saía da linha uma T-shirt sem mangas, ou uma camisa sem colarinho o dono demitia-se. O operário, o contra-mestre, o chefe de turno, o inspetor, ficavam a rir-se. A culpa era do “casaca”. Leia-se, do ministro. É este o sistema em que a comunicação nos pôs a funcionar. O Tollan encalhou no Tejo, o ministro da marinha devia demitir-se. Há anos choveu em Albufeira e um pobre diabo de um ministro teve de por lá andar de galochas.

A ideia que tem vindo a ser difundida é a do soberano absoluto: o senhor do trono é que tudo resolve. O rei absoluto tinha o poder simbólico de curar colocando as mãos sobre a cabeça dos súbditos doentes. Vai para ministro da Saúde em vez de formar um médico. Fazia a guerra, é chamado ministro da Defesa em vez de general. Não existiam serviços, nem responsáveis por eles. Estamos a voltar a essa modalidade de Estado inorgânico. E depois admiram-se as almas que setenta pessoas não sejam suficientes para assumir tantas culpas, que vão da chuva à seca! Em minha opinião e segundo estes princípios são ainda poucos para acudir às ocorrências do dia a dia, às aflições domésticas. Não queremos um governo, mas um INEM. E um INEM não se organiza com setenta pessoas!

Para a opinião pública, comentadeiros encartados, ser governante, hoje, não é governar, é assumir culpas. Pareceria lógico que quem assim quer os governantes, também quisesse que fossem numerosos, para terem mais matéria-prima a quem exigir responsabilidades políticas. Parece que não. Ainda no sábado passado o diretor de serviço no semanário Expresso falava na falência do Estado, porque, segundo ele, o Estado, logo o governo, não controlava a educação das crianças e não assumia a responsabilidade de explicar aos meninos que não se agridem os professores. E pedia a cabeça do ministro, claro. Os pais, as famílias e nós, a sociedade, não temos nada a ver com a má educação das crianças! Explicar a um adolescente que não se dá uma cabeçada num professor é tarefa do Estado, logo, do ministro!

A ideia de funcionamento do Estado que tem sido desenvolvida vai nesta linha, o ministro da educação deve educar as crianças e colocar um auxiliar de ação educativa atrás de cada uma, mas sem violência. Se há uma altercação o rei (neste caso Marcelo) surge e, logo atrás a corte com os seus ministros.

Os que nos dizem os que agora se queixam da chusma de governantes é que devemos andar pela mão dos ministros e dos secretários de Estado. E, sendo assim, setenta escuteiros para nos ajudarem a atravessar a rua não me parecem demasiados.

Os ministros e os secretários passam a desempenhar funções de diretores de serviços, de seções, de repartições, de guias, por isso têm de ser muitos. Não fazem o que deviam, que era fazer política, tomar medidas para o médio e o longo prazo, mas satisfazem a voracidade dos jornalistas de micro em riste a exigir respostas, medidas, já.

Setenta pessoas, para satisfazerem os diretos das TVs e os comentários seguintes, não são demasiados. São menos que os treinadores de futebol, uma atividade, essa sim, essencial. E podem ser dispensados diretores de serviços, técnicos de planeamento, inspetores. As calamidades resolvem-se com a chegada do presidente e de uma comitiva alargada de ministros e secretários.

Foi este o tipo de organização que nos venderam e que nós comprámos. A culpa não pode ficar solteira. Temos de assumir as nossas responsabilidades políticas. Demitirmo-nos.

Carlos Matos Gomes
Carlos Matos Gomes

Written by Carlos Matos Gomes

Born 1946; retired military, historian

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