Geração Ronaldo
Uma das possíveis formas de emprateleirar gerações — de “fazer” História — é recorrendo à taxionomia, a ciência que se ocupa da organização de grupos de seres vivos com base nas suas semelhanças e diferenças.
A taxionomia histórica tem recorrido a uma classificação dos seres humanos por gerações: geração dos babyboomers, os do pós Segunda Guerra, e depois há para todos os gostos: geração X, Y, Z, alfa, millennial, woke, de 70, aqui em Portugal até a ‘geração rasca’. Eu tenho a minha tabela privativa, que inclui a geração da ‘cena’ — termo que integra a novilíngua, revelador da diminuição drástica do vocabulário destas novas espécies geracionais, que acabarão a falar com os polegares nos ecrãs tácteis, prevejo, sem qualquer drama — dos alunos, ou de um aluno ou de frequentador ou frequentadores da Universidade Católica que agarrou ou agarraram num jornalista do jornal Expresso e o retiraram preso por braços e pernas da sala onde o doutor André Ventura, chefe do partido Chega, ia proferir uma conferência sobre a sua visão do mundo.
A ‘cena’ motivou várias reações, todas virtuosas. Os meninos da Católica tinham todo o direito de ouvir o doutor Ventura em confissão privada, os jornalistas devem preocupar-se com outras coisas. Houve quem criticasse os meninos desta geração: eles não têm valores e não respeitam a democracia, nem a transparência. E porque não convidaram os chefes do partido comunista, ou do Bloco de Esquerda? Ou alguém que tivesse a ideia de que apenas o trabalho produz riqueza, de que o sucesso não é ser senhor doutor ou engenheiro, ou CEO, ou ter um diploma de Mestre em Negócios — um MBA — Master of Business Administration — uma ferramenta vendida em propinas pelas Business Schools, escolas especializadas em áreas de negócio e gestão, em sacar umas verbas do Estado para criar uma start up, ou um unicórnio que morrerá como as alforrecas à beira mar, deixando um carro de topo de gama ao jovem de sucesso.
A ‘cena’ dos jovens futuros doutores da Católica, do doutor Ventura e do jornalista do Expresso não surge do nada. A filosofia do Ocidente valoriza o ‘devir’ através de uma lógica que nega o ‘Nada’. Nega o ‘Nada’, tomado e reconhecido enquanto abcesso encrustado nos processos de secularização e racionalização da história ocidental. A negação do nada foi resolvida com a invenção de um Criador e uma narrativa, a do Génesis, que faz do Criador uma personagem, um ser existente, Deus. Este Criador arranjou um emprego temporário, terá sido o primeiro trabalhador precário, e durante seis dias criou o universo do qual se tornou um CEO bárbaro, moderno, que esteve a ponto de eliminar as suas criaturas com um dilúvio, e a quem impôs um drástico regulamento, em forma de tábuas de dez mandamentos, entregues a um delegado, Moisés, no Monte Sinai, que começa por exigir que as suas criaturas amem o seu criador acima da todas as coisas e apenas a ele!
É esta a conceção do mundo — a ideologia — da Universidade Católica, dos seus mestres e alunos e, logicamente, dos convidados a formá-los. É significativo que ninguém entre os docentes da Universidade Católica tenha informado a atual geração de alunos da existência de uma antiga organização que se chamou Juventude Universitária Católica, a JUC, um organismo da Ação Católica, que juntamente com a Juventude Operária Católica, a JOC, e a Juventude Escolar Católica, a JEC, transmitiam aos jovens, além da fé num ente metafísico, juiz e acolhedor de hóspedes eternos num paraíso, valores terrenos de solidariedade e de justiça social . Os atuais jovens universitários da Católica trocaram a JUC pelo Chega! O tempora o mores — “ó tempos! ó costumes!” Cícero, Catilinárias.
Uma das causas apontadas para ‘cena’ da Católica — Ventura — Jornalista — remete para a sociologia, para a origem social dos alunos, crias de famílias abastadas, ou pelo menos dispostas a investir na educação dos filhos para eles virem a pertencer à elite que “saca fundos e manda nos negócios” e tem no doutor Ventura um exemplo vivo e encarnado do sucesso. André Ventura é um São Paulo para a comunidade dos alumni da Católica, alguém que se converteu às virtudes do sucesso, que renegou as origens e se apresenta como um fanático da nova religião. O Chega é uma moda entre a juventude, que tanto integra os suburbanos de epiderme tatuada, os dos jeans rasgados, como os rostos pálidos de blazer e calça creme. Por detrás encontram-se velhas raposas que salivam ao apreciarem estes jovens candidatos a Faustos, a vender a alma a troco de promessas de riqueza.
Como chegámos aqui? Acredito que os alunos da Católica que convidaram o doutor Ventura para lhes iluminar o presente e o futuro nunca tenham ouvido falar de Paraménides, um filósofo grego que muito pensou sobre o Ser e o não ser. Perguntava o grego: Seria possível que coisa nenhuma viesse a ser alguma coisa? Pensar o nada é também pensar o Ser e pensar o Ser é também pensar o devir! Os alumni da Católica estão preocupados com o seu devir e o doutor Ventura e os seus “chegas” também (com o deles, claro).
Percebê-los exige perceber que o devir de cada um dos atores da ‘cena’ da Católica e do Chega não inclui o devir da sociedade. Eles, os ‘chega de carne tenra’ ou os ‘chega de coiro duro”, os ‘chega lingrinhas’ e os ‘chega barrigudos’ comportam-se como os marinheiros holandeses perante os “dodó”, as aves gigantes da família dos pombos, existentes nas ilhas de Maurício, no Índico, e que por não terem inimigos naturais não fugiam dos homens; estes, sem outras preocupações que não fosse alimentarem-se de boa carne obtida com facilidade, mataram-nos até extinguirem a espécie em menos de cem anos. Ou como os habitantes da Ilha da Páscoa, que destruíram todas as árvores para esculpirem deuses que lhes trouxessem chuva e boas colheitas, até a ilha se tornar inabitável. As propostas dos movimentos populistas como o Chega são deste tipo e têm esta sofisticação de raciocínio: a redução ao ‘Nada’ produz riqueza e boa vida aos que a souberem aproveitar. O vale entre os rios Tigre e Eufrates já foi fértil — o crescente fértil — a sua redução ao nada que é hoje o deserto teve por filosofia o sucesso imediato da exploração sem cuidar do devir, do futuro. Esta ideologia do ‘Nada’ teve uma aplicação próxima de nós com a política de Bolsonaro para a desflorestação da Amazónia! É ao ‘Nada’ onde o Chega quer chegar e é essa a ideologia do neoliberalismo que constitui a doutrina da Católica. Os novos dirigentes ocidentais, saídos de madrassas como a Católica e integrados em seitas como o Chega ou a Opus Dei conduzirão Portugal e o Ocidente segundo estes princípios. É fácil adivinhar o futuro.
Quanto aos ‘velhos chega’ sabemos de onde vêm, como sabemos de onde vieram os legionários do Estado Novo, não há qualquer novidade nem surpresa, nem necessidade de estudos muito aprofundados. Mas quanto aos jovens, aos que frequentam as universidades, em particular as juventudes das minorias privilegiadas. Que geração é esta? De onde vem? Os médicos, gente da ciência sobre os interiores dos seres, afirmam que somos o que comemos (e também o que bebemos, vamos lá). O que comeu e bebeu esta geração? Da experiência de contactos com ela, comeu maioritariamente hambúrgueres e bebeu colas. Eu fui cinco vezes a restaurantes da cadeia McDonald — sei que foram cinco e recordo os locais e as circunstâncias de dilema que me levaram a eles: ou um McDonald e uma cola ou nada! Ora, o nada no estômago é uma realidade e não uma questão metafísica.
O que mais me impressionou nos ditos restaurantes — há de outras marcas — nem foi o cheiro, nem a gordura a escorrer, nem a molhanga, nem a necessidade de abrir a boca como um hipopótamo para enfiar o nariz naquela bola de encher barrigas e nádegas e esvaziar cérebros, de aumentar os números da roupa até ao 5XL e a linguagem a umas trinta palavras, mas uma figura — um género de manequim em plástico colorido chamado Ronaldo — o palhaço Ronaldo, à porta e junto aos balcões. O palhaço Ronaldo representava nos ditos restaurantes o que a figura da Última Ceia representa nos lares católicos, ou uma natureza morta a reproduzir um pão entre os menos religiosos, ou até, em restaurantes mais rústicos, a decoração composta por enxadas, foices, até a canga de um animal que puxou arados. Imagens de uma realidade: comer resulta do trabalho, resulta da transformação dos produtos da terra em alimentos à custa do esforço humano. Comer é uma partilha. Ora, esta geração de jovens fãs do Chega, come abençoada por um palhaço com o nome de Ronaldo e come sozinha a comida retirada de um pacote ou embrulhada num papel!
Há o Ronaldo futebolista — mas não é desse, nem do seu exemplo que esta geração se alimenta ideologicamente. O Ronaldo futebolista fez-se à custa de esforço, de muito esforço para ser o mais rápido, o que salta mais alto, o que remata com mais força e precisão. O Ronaldo futebolista e o palhaço Ronaldo da McDonald são entidades antagónicas, apenas com o nome em comum. A geração da Católica é a geração Ronaldo palhaço. O doutor Ventura é o Ronaldo palhaço, o que diz à sua geração que os hambúrgueres são um alimento saudável, culinária de agrado geral, um negócio de sucesso, que as Colas são uma bebida regeneradora de órgãos vitais, que a seriedade no trabalho é para falhados — losers — ou para quem não consegue vender cabritos sem ter um rebanho. O palhaço Ronaldo dos hambúrgueres diz aos frutos da sua geração, aos fiéis do seu pastor Ventura o que eles querem ouvir: apanhem e abocanhem o que puderem, o mundo é dos que não pensam no devir.
A geração do Ronaldo palhaço, a que pertencem os da ‘cena’ que purgou o jornalista do Expresso do sermão do doutor Ventura na Católica é a do Nada. A geração para a qual nada que seja vantajoso para um indivíduo — ele próprio — possa causar angústia, desconforto ou problemas de consciência. A de que nada é impedido ao que consegue vender um palhaço que convence que a comida nasce atrás de uma máquina que exibe fotografias de comida e que fornece trocos. É a geração para a qual a relação de criação e destruição deve apenas estar subordinada ao lucro imediato. A geração Ronaldo tem como ícone nacional o doutor Ventura e como ícone mundial Donald Trump, com quem o palhaço Ronaldo tem semelhanças fisionómicas, aliás.
A geração Ronaldo acredita que é possível pensar e falar sobre o que, ao que tudo indica, não existe. Que assume como verdade afirmações que fazem sentido, mas não se referem a coisa alguma, como é o caso das ‘promessas’ do doutor Ventura. Vai acabar com a corrupção. Vai aumentar o ordenado mínimo. Vai fazer a banca pagar as rendas de casa. Vai tratar da saúde a todos os portugueses, os coxos vão começar a andar e os cegos a ver. São afirmações tão verdadeiras como dizer que Sísifo, a figura da mitologia grega que subia e descia o monte carregando eternamente um barril de água se propôs afinal a subir ao monte Everest com uma caixa de refrigerantes ao dorso!
Todas estas afirmações fazem sentido, em geral. Possuem sujeito, verbo e estão gramaticalmente corretas. Todavia, qual é o seu grau de veracidade? Como pode uma afirmação ser verdadeira ou falsa se estamos a falar sobre coisas inexistentes? Como é suposto pensarmos sobre coisas que não existem no mundo real, mas que de alguma forma parecem existir nas nossas mentes, ou nas dos nossos pastores falantes? Para a geração Ronaldo e para Ventura, o seu guia, o Nada não existe. Tudo existe desde que seja afirmado. O púlpito, real ou virtual, é o local de criação de uma realidade: crê e salvar-te-ás! Ora o que faria um jornalista nessa sessão espirita sobre a transformação do nada num MBA? Rua! E só não foi merecidamente defenestrado por bondade ou porque as câmaras das TVs não estavam lá para transmitir o espetáculo que promove audiências.
Parte da razão pela qual conseguimos pensar, falar ou até imaginar coisas que não existem, é a linguagem. As palavras permitem-nos perceber conceitos e ideias, mesmo que estas não correspondam a nada, mesmo numa realidade empírica. O doutor Ventura, como Donald Trump, é mestre da linguagem que fornece um argumento sobre o que as audiências devem julgar como possível ou não. Quando falam de objetivos não realizáveis ou de realidades não existentes, colocam os fiéis a acreditar em mundos imaginários, mundos que podem ferir critérios verificáveis de realidade e verdade, mas que passam a existir nas suas mentes.
A geração Ronaldo, que não é exclusiva da Universidade Católica, mas inclui muitos dos jovens formatados nos mitos do integrismo religioso, desde a Opus Dei aos movimentos evangélicos, de jovens que acreditam que o palhaço Ronaldo transforma arengas contra emigrantes em hambúrgueres e estes em maná de votos, mas não acredita que o futebolista Ronaldo possa marcar um golo sem bola, exige um VAR!