Curiosidade pessoal — vale a pena?

Carlos Matos Gomes
3 min readJul 20, 2023

--

São habitualmente atribuídas a Pablo Neruda as frases de um poema que afirma morrer lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música, quem não encontra graça em si mesmo, quem destrói o seu amor-próprio. Que morre lentamente quem se transforma em escravo do hábito, repetindo todos os dias os mesmos trajetos, quem não muda de marca, não se arrisca a vestir uma nova cor, ou não conversa com quem não conhece.

Isto é, morre lentamente quem não é curioso.

Não há, segundo julgo saber, a certeza de ter sido Pablo Neruda o autor, mas quem escreveu o que aqui cito, deve ter razão. É bem capaz de ser verdade. Mas não é a verdade. Cada um tem direito a viver sem ser curioso, ou a ser curioso a seu modo. Ou até de seguir a curiosidade dos outros. O mundo está coberto de fiéis que acreditam na curiosidade de outros. Há muitas mais ovelhas do que pastores. São poucos os que procuram satisfazer a sua curiosidade por si. Implica correr riscos de ser herege, subversivo. E estes têm destino conhecido, só podem ter a curiosidade de saber como vão ser eliminados.

E o que acontece aos que perderam a curiosidade? Não me estou a referir aos céticos, aos que não acreditam em nada ou duvidam de tudo, aos descrentes, ou desiludidos, mas aos indiferentes, aos que adquiriram a arte dos faquires de levitar adormecidos e sem necessidades sobre os problemas do mundo, deixando-os para os curiosos.

Segundo a história da humanidade vendida nas enciclopédias, foi há cerca de 8 mil anos que os nossos antepassados iniciaram a sedentarização num processo conhecido como Revolução Agrícola, ou Neolítica. Isto quando o Sapiens deixou de ser nómada e passou a cultivar as terras e a domesticar animais, adquirindo o sentido e a necessidade da propriedade, da posse. Apesar de parecer um processo positivo para a sociedade e ter sido decisivo para definir nosso estilo de vida atual, originou todos os problemas que ainda hoje enfrentamos e que não resolvemos. De facto reduzido a um: o poder. Toda a curiosidade humana desde há milénios se concentra num ponto: como dominar os outros.

Sendo assim valerá a pena ser curioso se a curiosidade nada alterou no essencial do comportamento dos humanos desde os primórdios da humanidade? Mas será possível sobreviver sem curiosidade, se sem esta ficamos à mercê do poder e da violência da curiosidade dos outros? Fará sentido sermos curiosos se a nossa aventura na vida está tão pré pré-determinada quanto a de uma amiba, se resume a existir durante um curto espaço de tempo?

Vejo um anúncio da UNICEF — uma mãe esquelética com um filho esquelético ao colo. Há mais milhões de seres humanos como estes do que clientes da Coca Cola ou do MacDonald, rigorosamente sem nada, a não ser fome e sede. Os intérpretes dos deuses de algumas das grandes religiões do planeta garantem que os infiéis — todos os que não acreditam no deus verdadeiro, o seu — viverão eternamente assim. Pelo seu lado, os cientistas das mais elaboradas ciências garantem que toda a humanidade, incluindo os milionários, os banqueiros, os donos do petróleo, os senhores da guerra, ou os seus descendentes, morrerá assim, com eles mumificados em vida, num planeta ardente e seco.

Que valerá a nossa curiosidade e o nosso instinto de sobrevivência se a pequena percentagem dos humanos que se consideram mais evoluídos nem sequer consegue evitar morrer afogada nos sacos plásticos em que embrulha o que come e veste? Se os mais inteligentes seres da nossa espécie andam em busca de uma inteligência artificial mais poderosa do que a sua?

Sinto curiosidade com o futuro da humanidade? Não. Se há quem construa arranha-céus de centenas de metros no meio do deserto o que sinto é preocupação com o futuro dos que gerei e dos que me rodeiam!

Por fim, sinto receio dos grandes homens, porque desde sempre os que a humanidade considera grandes homens, a maioria dos que estão imortalizados em pedra ou metal e espalhados pelas arenas do planeta, são tipos catastróficos. Cada um escolha os seus. Eu temo os do presente e os do futuro. Não tenho qualquer curiosidade em saber o que farão, porque farão o que todos os antecessores fizeram!

Não há ninguém que admire? Dos do meu tempo há. Admirei Mandela e admiro Lula da Silva. O primeiro porque conseguiu com o seu exemplo dominar o ódio e o outro porque com a sua coragem está a libertar os mais explorados e a transmitir-lhes esperança. A minha curiosidade é saber até quando o deixarão viver.

--

--

Carlos Matos Gomes
Carlos Matos Gomes

Written by Carlos Matos Gomes

Born 1946; retired military, historian

Responses (1)