Carlos Matos Gomes
4 min readSep 1, 2021

CONVERSA DA TRETA

As explicações de Joe Biden para a saída dos EUA do Afeganistão são típicas conversas da treta. Ele fala de outras causas que não as verdadeiras para explicar decisões de puro cinismo e egoísmo — de pura amoralidade, se a moral fosse elemento valorizado na ação estratégica.

Diz Biden, cândido, que a guerra tinha de terminar um dia, os EUA não podiam ficar eternamente no Afeganistão, que foi oferecido aos afegãos um exército de 300 mil homens muito bem equipado. O presidente dos EUA, uma boa alma, não pretendia empenhar uma nova geração de americanos numa guerra fora de casa e os afegãos recrutados pelos americanos que se defendessem se quisessem continuarem a comer Mac Donalds e a beber Coca Cola, a mandar as filhas à escola e a fazer a barba com Gillette…

Tretas! Bullshits

A questão não é, nunca foi, a de uma guerra dos EUA e dos seus escudeiros da NATO no Afeganistão: a questão foi a de uma invasão dos Estados Unidos. E as razões da invasão nunca foram explicadas ao mundo, nem aos afegãos! O motivo oficial para a casus belli foi o facto de Bin Laden, apresentado como chefe da Alqaeda, a organização que terá executado a operação contra as Torres Gémeas de Nova Iorque, ali se encontrar escondido. O que se sabe é que Bin Laden e a Alqaeda foram uma criação dos EUA, que ele era saudita assim como a maioria dos operacionais e que os sauditas, a família Saud, eram e são os grandes aliados dos EUA, ou de parte da administração dos EUA ao longo dos tempos, republicanos e democratas. Bin Laden esteve sempre na fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão e a sua família, e os chefes sauditas, e logo uma parte da administração dos EUA, sabia onde se encontrava. Em resumo: a ocupação do Afeganistão teve como pretexto o ataque às Torres Gémeas efetuado por um grupo de sauditas que uma fação da administração Reagan criou para seu proveito e que sempre soube onde se encontrava.

Quanto à autoria do ataque às Torres Gémeas permanecem as maiores dúvidas sobre quem esteve por detrás. Como permanecem dúvidas sobre quem mandou assassinar John Kennedy, ou o seu irmão Bob… A obra de Shakespeare, um clássico sobre as perversidades das cortes e dos cortesãos, assenta na traição e na ambição dentro dos grupos de poder interno e não em ataques externos. Leia-se Júlio César, Hamlet, Otelo, Macbeth… Os afegãos são tão responsáveis pelo ataque às Torres Gémeas como pelos furações na Florida!

A invasão do Afeganistão foi apenas o pretexto para um dos grupos de poder na oligarquia que governa os EUA justificar a ocupação de uma zona considerada na altura de grande importância estratégica para a campanha que os EUA desenvolviam na Ásia Central, aproveitando a implosão da URSS, de, instalados aí, afirmar poder e recolher os lucros.

A questão que devia constar do discurso de ite missa est de Biden não é, pois, a de sair de uma guerra, mas a de terminar uma invasão e ocupação que já não faziam sentido e não interessavam aos novos objetivos estratégicos do grupo da oligarquia americana que terá estado, com boas probabilidades, por detrás da criação e da ação da Alqaeda e da carnificina mobilizadora de desejos de vingança com o ataque às Torres Gémeas a 11 de Setembro de há 20 anos.

Obama decidiu começar a fechar a loja e organizou um show à volta da captura de Bin Laden. Podia e devia tê-lo capturado e julgado. Mas isso revelava a trama tecida com o ataque à Torres Gémeas. Se o fizesse, acontecia a Obama o que aconteceu aos Kennedy. De qualquer modo, quando Bin Laden foi caçado já o Afeganistão era lixo estratégico. A caça a Bin Laden deu origem a uma encenação de filme de série B de Hollywood, com Obama e assessores numa cave a assistir em direto ao avanço dos rambos. Já a prisão e o enforcamento de Saddam Hussein haviam transmitido cenas miseráveis e vergonhosas da responsabilidade da administração americana.

Obama parece que atirou o corpo de Bin Laden ao mar. Trump atirou o Afeganistão para o caixote do lixo, como um mono, com o acordo dos talibans. Biden teve que arranjar umas explicações esfarrapadas para a operação de abandono e ele é francamente mau ator para uma conversa de treta. O John Wayne faria com certeza um discurso mais convincente.

Afirma Biden que os EUA ocupavam o Afeganistão há 20 anos. Foram 20 anos de grandes negócios para as companhias militares privadas de duas das mais tenebrosas figuras da política mundial, Donald Rumsfeld e Dick Cheney e do complexo militar industrial. Afirma Biden que o Afeganistão possuía um exército de 300 mil homens, o pequeno problema era ser constituído pelos que constavam das folhas de pagamentos dos senhores tribais da guerra. Parece que não passavam de 80 mil. Nunca existiu um exército nacional, nem um governo nacional, nem um estado-nação mais ou menos dentro dos parâmetros em que eles são reconhecidos pela comunidade internacional. O cimento nacional eram os dólares. Secada a fonte, secou o estado do Afeganistão. Volta tudo ao comércio das papoilas e à sharia!

Por fim, diz Biden, com ar sério que não pretende mandar nova geração de americanos morrer no Afeganistão. Esquece-se de adiantar que, se for para morrer no sul do Pacífico, ou na Coreia, a combater pelos novos interesses da oligarquia americana não haverá hesitação. Lá irão os bravos GI…

A última imagem da debandada do Afeganistão — um sucesso na avaliação de Biden — foi a de um solitário soldado americano esverdeado, a embarcar num avião, fotografado com uma câmara de visão noturna, sinal que saíram com as luzes apagadas, às escuras… para não serem apanhados a fugir…

O desembarque num novo Teatro de Operações será, como é costume na história, mais glorioso, provavelmente com marines, bandeiras e explosões…

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Carlos Matos Gomes
Carlos Matos Gomes

Written by Carlos Matos Gomes

Born 1946; retired military, historian

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