Como é que isto, ou aquele foi ali parar?
Como é que isto, ou aquele foi ali parar? É uma pergunta recorrente. Há respostas que raramente correspondem às razões: talento e sorte. Tanto o mérito como a sorte são quase sempre condicionadas pela fidelidade e pela disponibilidade para servir.
O domínio de um grupo ou de uma entidade é tão mais eficaz quanto mais os submetidos acreditarem que a submissão é uma liberdade e uma felicidade. As técnicas de obter a submissão voluntária são conhecidas e utilizam como instrumento aquilo que é designado por “informação” e “comunicação”, mas que é na realidade manipulação e condicionamento de pensamento. A “informação” é em todos campos, política, religião, economia, uma arma e deve ser vista como tal e também como uma mercadoria, ou uma droga.
Uma sociedade global é caraterizada antes de tudo por uma guerra permanente e global. A ordem mundial saída da Segunda Guerra Mundial assentou numa Guerra Fria entre dois blocos, sem conflitos diretos entre os dois contendores, os EUA e a URSS, no jogo da dissuasão provocado pelo terror nuclear. A propaganda desempenhou um papel essencial na manutenção das fidelidades dentro de cada campo. Apenas quando falhava propaganda as potências dominantes utilizavam a força. A URSS com a invasão da Checoslováquia, os EUA com as intervenções no Vietname e no Chile.
Mas o meio mais eficaz a todos os títulos era (e é) a manipulação de consciências através da “informação”. Existiam meios abertamente destinados a propaganda no “lado de lá”, caso da Voz da América e da Rádio Moscovo, e os meios de comunicação para a sociedade interna. O condicionamento das opiniões públicas nas sociedades ocidentais era feito em primeiro lugar através de processos subtis de atribuição de licenças a “gente de confiança”, ligada aos regimes e dele dependentes para os seus negócios. Este era o modo operandis das democracias liberais. Nas ditaduras europeias — a Espanha, Portugal e a Grécia — o condicionamento era exercido, além da atribuição de licenças para jornais a pessoal de confiança — através da censura.
Em ambos os casos eram necessários “executores de ordens”, pessoas concretas que traduzissem para o grande público os valores e as verdades convenientes, que vendessem a mercadoria. Desde sempre os detentores do poder real tiveram os seus escribas avençados, os seus hagiógrafos, como tiveram os seus juristas para as convenientes interpretações das leis, ou para o seu fabrico. A subida ao trono do rei D. João I constitui um excelente exemplo do papel destes dois tipos de agentes do poder, o cronista Fernão Lopes encarregou-se da propaganda que chegou até nós como verdade histórica oficial e o jurista João das Regras forneceu a base legal para justificar o poder do príncipe de Avis.
Esta longa introdução vem a propósito de investigações que estou a realizar para um trabalho que talvez venha a fazer sobre os tempos antes do 25 de Abril de 1974 e sobre o que ocorria no mundo e em Portugal enquanto os capitães, os generais, os políticos conspiravam e os jovens ou emigravam ou combatiam em África. Lendo notícias do dia 10 de Abril descubro uma notícia aparentemente irrelevante, mas reveladora de percursos de quem influencia a nossa vida através da ideologia:
“Regressou a Lisboa a delegação portuguesa ao 25º Aniversário da OTAN” — procurei saber quem participara na tal delegação: Ramiro Valadão — presidente da RTP, Engenheiro Manuel Bívar — presidente da Emissora Nacional; Professor doutor Martins de Carvalho — diretor de A Capital; Dr Barradas de Carvalho — diretor de A Época; Dr Jorge Botelho Moniz — do Rádio Clube Português, jornalista Alves Fernandes, do Século; Dr Feytor Pinto — diretor dos Serviços de Informação; jornalista Dr José Eduardo Moniz, acompanhado pelo Dr Pedro de Campos Tavares, secretário para a educação da Comissão Portuguesa do Atlântico. Segundo os jornais, os componentes da delegação portuguesa participaram em diversas reuniões com especialistas em economia, política e assuntos militares.
Chamou-me a atenção o nome de José Eduardo Moniz nesta delegação de alto nível à sede da NATO (OTAN) quinze dias antes do 25 de Abril. Será o mesmo José Eduardo Moniz que após o 25 de Abril esteve sempre no topo — no teto — do edifício de controlo da informação e programação e da correspondente componente de manipulação política e cultural, na RTP, na SIC, na TVI?
Como apareceu José Eduardo Moniz nestes cargos? Como apareceram tantos outros Josés nos vários órgãos de comunicação como jornalistas, comentadores, especialistas de tudo e nada?
Estes Josés desempenham um papel importante no exercício do poder através do condicionamento da informação e da inculcação de pontos de vista na sociedade, da formatação ideológica que determina regimes, alianças, negócios. Mas eles, sendo importantes, são apenas instrumentos e são indícios de como o que lemos e vemos nos é cozinhado e como surgem os cozinheiros de fato e gravata.
José Eduardo Moniz não cometeu qualquer crime, nem falta, apenas tratou da vida e fê-lo com enorme sucesso. Nascido em 1952 numa família de classe média da ilha de São Miguel, veio para Lisboa frequentar o curso de Filologia Germânica e, aos 22 anos, em 1974, quando os jovens da sua geração, mesmo os que tinham direito a adiamento na prestação do serviço militar, assentavam praça no final dos cursos e seguiam para a guerra em África, José Eduardo Moniz, surge, já doutor, não num quartel, mas na delegação portuguesa aos 25 anos da NATO a par com alguns dos mais influentes propagandistas do regime!
A participação em atividades da NATO tão importantes como esta, com reuniões dirigidas por altos funcionários da organização exige uma credenciação e um agrément. O recrutamento de “agentes” para este tipo de organizações faz-se para satisfazer dois objetivos: atrair alguém com um passado, para aproveitar a sua experiência e credibilidade, ou incorporar um jovem funcionário com potencial de inteligência e fidelidade. Se este José Eduardo Moniz da notícia é o José Eduardo Moniz que dirigiu a informação e os programas das cadeias de televisão portuguesas, que surge nos órgãos dirigentes do maior clube português, se é um «famoso», está em boa parte explicado como surgem os “chefes”, os “diretores” no topo das organizações de exercício do poder de facto. Está explicado um dos caminho das pedras para o sucesso.
Não há acasos, nem mérito quando se trata de encontrar lenhadores para cortar a raiz ao pensamento. Estas personagens não são sequer e em minha opinião censuráveis, são pragmáticos. Não se trata de questões éticas ou morais, mas de interesses. Embora disponíveis e formatados, com um pensamento único, da molhada de comentadores avençados, uns têm mais sucesso, caso do José Eduardo Moniz desta notícia, de Marques Mendes, de Rogeiro, outros menos. Cabe-nos saber que estamos perante vendedores que são julgados pelos resultados, tal como os missionários das Testemunhas de Jeová, ou os angariadores de seguros e de vendedores de rifas para o sorteio do Lar do Comércio.
Estas personagens têm um papel que é o de corromper o que Carlos Oliveira escreveu num poema cantado por Manuel Freire:
Não há machado que corte a raiz ao pensamento,
não há morte para o vento
nada apaga a luz que vive / (…) num pensamento.
O poema e a canção afirmam que o Estado (o poder de facto) podia controlar tudo menos o pensamento, que sempre resistiria, uma vez que este é «livre». A estratégia de controlo da informação é a de conseguir que o Estado (em qualquer das suas formas) controle o pensamento dos cidadãos e fazê-los acreditar que são livres. Não é uma tarefa para poetas, mas para técnicos frios e sem problemas de consciência.