Coisas a mais, ou a menos?
O confinamento levou-me a descobrir que temos coisas a mais, que não nos servem para nada e coisas a menos, de que necessitamos.
Imagem da TV: um corpo, tronco nu, meio coberto por uma folha de papel azulada, umas pernas escanzeladas, uns pés descalços sobre uma maca, a ser empurrado por um corredor, a caminho da morgue, presumo. Assim será metido num gavetão frigorífico, depois num caixão, fechado, selado, higienizado para ser cremado.
Precisamos de pouco. No entanto deixamos muito, e a maior parte do que deixamos é inútil. Foi inútil desde que o tivemos.
Em tempo de confinamento deambulamos por casa: Um mundo de inutilidades. Um armário carregado de loiça, pratos que davam para um refeitório. Quantas vezes os usámos? Faqueiros? Não me refiro a talheres, mas a faqueiros completos de dezenas de peças, em caixas de vários andares? Chávenas, tachos, panelas, assadeiras, sim, quantas assadeiras de barro, de alumínio, de Pyrex, quadradas, redondas, retangulares? Copos de todos os feitios, tamanhos e cores, de pé alto, redondos, esguios? Abre-latas? Descobri, num canto, um cantil. Noutro um caracol de loiça para meter palitos de comer caracóis, ou búzios. Toalhas com bordados à mão e toalhas aos quadrados. Bibelôs? Estou, se calhar quase todos estamos, rodeados de objetos estranhos, um tocador de gaita-de-foles de onde terá vindo? E umas chaminés de barro? Mais um cachimbo! E uma dançarina de porcelana e o conjunto de sinos? Isqueiros e canetas sem tinta? Cinzeiros, relógios, botões, frascos. Falta ir às roupas, o bragal: Quantos lençóis, fronhas, cobertores, toalhas, colchas, almofadas, travesseiros? Edredões! Mantas de trapos! Roupa, quantos casacos, calças, vestidos, sobretudos, blusões, sapatos, sandálias, botas que já não servem, que nunca serviram? Faltam os livros, os papéis, os jornais, as fotografias, os recuerdos e souvenirs. E os artefactos eletrónicos que foram sendo ultrapassados: rádios, gira-discos, telefones, telemóveis, carregadores? Tralha inútil!
Falta acrescentar o lixo que sai das televisões, da que estaciona no canto da sala, na do quarto; os comentadores, os da bola, os de tudo: do clima à bomba de hidrogénio. Os que me explicam o que acabei de ver, de ouvir. Todos, com e sem gravata, a informarem-me que a vida é perigosa e acaba mal, que o que hoje sobe, amanhã desce.
Uma caterva de sirenes televisivas a gritar que vivemos no caos. Esquecem-se de informar que me vendem o caos em cada anúncio de publicidade!
Descobri com o confinamento que o caos começa em minha casa. Não preciso de um pivô (com isto da neutralidade de género já será de incluir as pivoas?) para me avisar.
O caos, construímo-lo logo na primeira mala de levar livros à escola, cadernos, borrachas, lápis. O caos começa nos que nos rodeiam. O caos é a ordem do mundo e ainda pago para me informarem do caos que eu criei!
Há caos nos hospitais! Obrigado. E nas redações das televisões, da rádio e dos jornais? Aí não há caos, há estratégias de poder sob a forma de alarmes pela nossa saúde! E nos estádios de futebol? Não há caos, há corrupção! E nos bares e tabernas? Bebedeiras e vómitos que reproduzem as televisões! E nas escolas? E no trânsito? E nas praias? E nas romarias? E nas peregrinações? E nos lares de idosos? E nas creches e infantários? E nos tribunais? E nos paióis da tropa? E nos bancos? E nos aeroportos e até nos cemitérios! E nas nossas relações? Fazemos parte do caos.
O que nos faz falta é uma qualquer indicação que nos ajude a viver no caos sem gritar contra o caos. Faz-nos falta uma panela de escape para evitar os ráteres que saem dos pregoeiros do caos! Falta-nos ordem nas ordens. Ou uma ordem para descobrir uma vacina, um teste rápido, mas seguro, à sanidade mental de alguns dirigentes que dê positivo ou negativo antes de tomarem posse.
Temo que a ressaca do confinamento seja uma sociedade mais confinada, com mentalidades mais fechadas, com mais cabos da guarda a gritarem por ordem, por limpezas gerais, por desinfestações sociais. Eu, contra os fascismos anunciados, necessito de desordem, de desmascarar os ordeiros, porque eles ladram, mordem e matam.
Vivemos em estado de catástrofe do nascimento à morte porque criámos uma civilização de caos, no paradoxo da abundância, de excesso de coisas e carência de virtudes.
Diógenes, o grego que vadiava pelas ruas na mais completa miséria material, desprezava a opinião pública e parece ter vivido numa pipa ou barril, cujos bens se resumiam a um alforje, um bastão e uma tigela, terá dito a Alexandre, o Grande, quando este, ao encontrá-lo, lhe perguntou o que poderia fazer por ele, numa posição em que lhe fazia sombra. Diógenes respondeu: “Não me tires o que não me podes dar!”
Os pregoeiros do caos nada nos podem dar, a não ser ruído.
Temos barulho a mais, hienas a mais, carpideiras a mais falantes e “ecrantes”. Temos coisas a menos: serenidade, consciência individual, cooperação, tolerância, respeito, reflexão. Humildade a menos para pensarmos o que faríamos se estivéssemos no lugar do outro, do diretor do hospital, do médico, do enfermeiro, do delegado de saúde, do administrador do lar, do diretor, do secretário, do ministro, do comandante, do que abre e fecha escolas e restaurantes. Em vez disso, recebo notícias de uma porta de um hospital a informar-que está ali uma ambulância com um doente. Havia de estar com quem? Com frangos de churrasco?
Devíamos saber o que é importante. Um raio de sol pode ser suficiente. As catástrofes e o que estamos a viver é um estado de catástrofe, devia ajudar-nos a pensar no que é essencial para cada um de nós. Eu sinto falta de Liberdade e excesso de Perversidade!
Carlos de Matos Gomes