Coca Cola e Democracia

Carlos Matos Gomes
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Vender democracia, hambúrgueres e até meias de nylon para as senhoras

As forças americanas que permaneceram na Europa após a Segunda Guerra trouxeram os seus produtos como os europeus haviam feito com os indígenas durante a sua expansão pelos continentes. Além das notas de dólar europeu, não convertível, os americanos trouxeram as suas roupas, jeans e meias de vidro, de nylon, canções e discos, hamburgueres, tabaco com filtro, creme Ponds para a pele das senhoras e Brylcreem para abrilhantar a cabeleira dos homens, preservativos e a sua democracia de mercado e toda a liberdade, desde que os movimentos sociais não interviessem nos lucros dos negócios. A Coca Cola foi considerada a bebida da Democracia e da Liberdade. Onde havia Coca Cola havia democracia! No Portugal de Salazar não havia Coca Cola, logo não existia democracia, exceto em Moçambique por causa dos sul-africanos. Os suseranos locais. Em Angola vendia-se a Fanta, uma zurrapa ainda pior.

A retórica de impor a democracia para impedir que uma ditadura comunista se implantasse foi o prato forte da propaganda dos Estados Unidos desde o final da Segunda Guerra e da adoção da doutrina Truman, de détente, em que os Estados Unidos tanto invocavam o perigo do comunismo enquanto ideologia, como o perigo da expansão da União Soviética enquanto competidor estratégico. O argumento era utilizado segundo as conveniências. Tratava-se de domínio territorial.

O pragmatismo da política americana, isto é, a ausência de valores de referência, de escrúpulos, substituídos pelos interesses, e o desprezo pelos direitos humanos que caracterizaram a “doutrina Kissinger”, fizeram que esta sombria personagem emergisse simultaneamente como o mestre do golpe do Chile e dos massacres no Camboja e também como o padrinho da “democracia portuguesa” tendo o embaixador Carlucci como lugar-tenente e o major Melo Antunes como o agente local.

O golpe do 25 de Novembro foi financiado pelos Estados Unidos, com transferências feitas através da Internacional Socialista, que suportaram os novos órgãos de propaganda. Assim, de cor: Jornal Novo, Luta, Tempo, Europeu entre outros foram criados com fundos americanos, assim como a UGT foi financiada pelos sindicatos americanos e europeus. Também armas foram fornecidas e ainda hoje não se lhe conhece o paradeiro. Todas estas afirmações estão provadas e constam de documentos e publicações disponíveis pelo público. Não há desculpa para invocar ignorância.

Não será, com certeza, esta a narrativa oficial de cosi fan tutte — isto é, os outros europeus também abdicaram da sua autonomia e os mais disponíveis foram premiados — que vai ser cantada sucessivamente e a várias vozes na Assembleia da República. As lenga-lenga carregarão as cores negras do perigo comunista (que tinha sido arredado em Agosto à margem do Acordo de Helsínquia) e do levantamento nacional dos bons portugueses contra o totalitarismo (ação do ELP/MDLP e do clero ultramontano, devidamente olvidado — Pacheco de Amorim representará o ELP, mas virá alguém da arquidioceses de Braga? Ou Nuno Melo tomará esse encargo?), uma narrativa que esconde o fabuloso negócio da desnacionalização da banca, das Parecerias Publico-Privadas, do saque aos fundos europeus destinados a formação profissional, do desordenamento do território, em particular no litoral, para construção e corrupção.

Não existem narrativas oficiais que não representem relações de força num dado momento. Mas, neste caso, a narrativa oficial é tão mal cozida, ou cosida, assim se refira um mau cozinhado ou uma peça de roupa com os fundilhos esgaçados que o povo teve de ser excluído, não fosse alguém gritar que o rei ia nu. A imposição de uma narrativa oficial que exclua o povo será sempre uma ação totalitária que assenta na cobardia de quem a promove como um ato de fé.

A narrativa oficial do 25 de Novembro que vai ser apresentada na liturgia na Assembleia da República é um ato de cobardia e de vergonhosa humilhação. De cobardia pela não assunção do papel de gente por conta que desempenharam os celebrados e homenageados, e de vergonhosa humilhação por se apresentarem como homens livres quando foram meros caddies, os carregadores do saco com os tacos do golfista.

A celebração do dia foi encenada para ser um espetáculo de Televisão sem surpresas. Um reality show no qual os convidados se prestarão ao papel de figurantes graciosos e com as deixas preparadas. Os generais farão vénias aos ministros que os ofenderam, sem continências nem apertos de mão, os deputados que advogam os interesses dos banqueiros falarão sobre democracia e justiça social, os médicos que operam nas clinicas privadas falarão da democracia e do serviço nacional de saúde. Um almirante gritará da ponte de comando: Sus, a eles, aos infiéis russos! Do púlpito no centro do palco sairá, repetido a várias vozes, um sermão conhecido, a que os crentes dirão âmen com a cerviz baixa.

Alguns figurantes nacionais — menores, porque os maiores estão todos mortos, caso de Kissinger, Carlucci e Melo Antunes — emoldurarão as galerias como fantasmas e o facto mais significativo, segundo a comunicação social, é que a banda da GNR tocará o hino nacional duas vezes. Talvez fosse de propor que uma das intervenções fosse substituída pel’ Os Vampiros, do Zeca Afonso.

Também parece que o autor e principal animador da cerimónia dos mansos a que Vasco Pulido Valente designou pelos Devoristas, terá sido Nuno Melo, um menino de oiro (homenagem a Agustina Bessa-Luís) que é uma garantia de patriotismo e coragem. No livro Os Americanos e Portugal, de Bernardino Gomes, do Partido Socialista, já falecido, e de Tiago Moreira de Sá, que já foi do PSD e agora é eurodeputado do Chega, a tramoia do 25 de Novembro está muito bem explicada.

Por mim, propunha que a cerimónia terminasse com um magusto oferecido pela associação de bancos e pela embaixada dos Estados Unidos, uns porque que tiveram este ano lucros nunca vistos, e os outros porque andam de vitória em vitória desde o Iraque à Ucrânia, prova de que o 25 de Novembro valeu a pena.

Uma nota final e pessoal, custa-me ver uma personagem por quem tenho respeito e estima envolvidas nesta farsa. É que não se pode estar ao serviço do mesmo Kissinger que chefiou o golpe do Chile, que autorizou a invasão de Timor Leste pela Indonésia e dar da cara pela independência de Timor e abençoar o 25 de Novembro e os seus visíveis resultados de aumento de desigualdades e de injustiças. Acredito em razões de lealdade para com alguém que ele muito admirava e em que confiava. Melo Antunes. Sem nunca ter sido íntimo, nem seguidor político de Melo Antunes, julgo que este não se prestaria a caucionar esta cerimónia manhosa com a sua presença esfíngica.

Imagem de Nemésis, de Albercht Durer, capa do livro Fortuna e Malogro de Margarida Pinheiro, Cecília Vaz e Ricardo Cordeiro (ISCTE)

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