Carta de um espetador de telejornais
Excelentíssimos Senhores Diretores de informação, pivôs, pivoas, repórteres de rua e de alpendre de lar de idosos, também às sentinelas de focos de infeção:
Após cerca de um ano de esforços de telescola da vossa parte para me elucidarem das maldades de um vírus (chinês, segundo o perito Trump) e da falência do Estado português no seu combate, de todas as suas instituições e entidades, das mais altas às mais baixas, do excelentíssimo Presidente da República à mais humilde auxiliar, lamento informar-vos de que chumbei à vossa cadeira. Fiz um autoteste e, reconhecendo o vosso esforço, competência, entusiasmo, alegria no trabalho, busca incessante pelas maiores e mais evidentes desgraças, alarmes e piscar de olhos, viagens ao estrangeiro, consultas a eminências várias, me encontro no estado que passo a resumir:
Não distingo um vírus da cabeça de alfinete
Não distingo um ventilador de um aspirador
Não distingo uma pandemia de uma orgia, ou de uma festa de pândegos, vá lá
Não distingo um teste rápido de um inquérito de sim ou não
Não distingo uma UCI de uma UZI
Não distingo as aptidões das máscaras sociais das antisociais e estas das medicinais
Não distingo o bastonário dos médicos de entre os 500 médicos que têm passado pelas urgências das televisões
Não distingo a bastonária dos enfermeiros dos concorrentes do Big Brother
Não distingo os frascos da astrazeneca da pfizer nem esta da moderna e a moderna da que está para vir ainda mais moderna (talvez estejam a passar demasiado depressa as imagens…)
Não distingo um lar da Misericórdia de Carregueiros de um lar da Misericórdia de Reguengos, nem este do de Vila de Rei, nem de outros mil por onde passeiam jovens aflitos de microfone
Não distingo uma cama covid do Alto Tâmega de uma cama covid do Baixo Tejo
Não distingo os gráficos covid do Paulo Portas dos gráficos covid do Rodrigues dos Santos nem estes dos da SIC (talvez com uns desenhos animados… sei lá)
Não distingo a competência dos comentadores da TVI dos da SIC e estes dos da RTP e dos da CMTV, nem dos da bola, nem do vídeo árbitro
Não distingo a incompetência do diretor do Hospital Amadora Sintra, da do de Almada e a deste da do São João no Porto e ainda do da Universidade de Coimbra e da dos diretores e clínicos de todos os hospitais do Médio Tejo, do Alto Douro, da foz do Mondego, do estuário do Sado, dos Algarves e Ilhas. Não consigo, aliás, perceber a razão de associar os hospitais aos rios… ainda se fosse a regiões demarcadas de vinhos, mas pelas vossas doutas informações concluí que só existem incompetentes nos lugares de responsabilidade… os competentes estão todos por conta das televisões… é a sagrada lei do mercado, claro
Não distingo as estirpes do vírus, a chinesa da inglesa, a inglesa da sulafricana e esta da brasileira, apesar das explicações de um batalhão de especialistas que as conseguem topar à légua, sempre antes do primeiro vigia do Serviço Nacional de Saúde as descobrir
Não distingo um repórter de máscara à porta de um foco de infeção em Pias de um repórter de máscara à porta de um foco de infeção em Ourém, ou no Sátão. Chego a desconfiar que é sempre o mesmo e que as estações de TV têm cenários de cartão com várias portas de urgências… a sério
Não distingo um avião cinzento a aterrar n Funchal com um doente covid de um avião cinzento a aterrar no Montijo com um recuperado do covid, ou uma senhora em trabalhos de parto
Não distingo um corredor do hospital de Santa Maria de um corredor do Hospital de São João, nem uma maca dos Bombeiros da Chamusca com um doente covid de uma maca dos Bombeiros de Chaves com um corpo coberto com folha de alumínio, mas vossas excelências conseguem
Tudo isto após quase um ano de lições dadas por teletrabalho, nas vossas telescolas!
Louvo e agradeço o vosso esforço
Vou, com certeza reprovar na cadeira de boa informação que magistralmente ministraram e ministram
Serei, porventura o único. Por isso, e dado o sucesso que obtiveram, na medida em que apenas eu (e o meu gato, que dorme todo o dia) me declaro publicamente impenetrável às vossas doutas explicações, gráficos, repetições à matéria dada, vos desejo a continuação do vosso trabalho e do vosso método de ensino, assim o vírus vos ajude
Agradeço-vos também terem ressuscitado as aulas de geografia da extinta escola primária do antigo regime, onde fui obrigado a decorar os rios, com afluentes, linhas de caminhos de ferro e ramais com estações e apeadeiros. Com a vossa preciosa ajuda fiquei a conhecer agora, e graças a vós, repito, a insuspeita rede de lares do país, as portas dos hospitais, os modelos de ambulâncias, de macas, de máscaras, as especialidades de intensivistas, epidimologistas, virologistas que felizmente zelam por nós contra os alarmistas, os deitabaixistas, os aimeudeusistas que só neste país, contra os rostos patibulares dos comentaristas skypistas, de brincos nas orelhas e olhos esbugalhados.
Excelentíssimos diretores de informação, garantem umas das vossas estações de alarme, em rodapé, que estão aí por mim, outras que por mim darão tudo, outras piscam: Alerta! Outras ainda iluminam o ecrã com Ultima Hora. Quanto vos agradeço e quanto vos devo! Sei de cor quantos internados, quantas camas, quantas altas, quantas baixas, quantos óbitos ocorreram. É claro que podiam vossas excelências ir um pouco mais longe, informar os graus de febre média, o número de ataques de tosse dos doentes, os ais, podiam entrevistar doentes entubados, gostaríamos de apreciar uns pulmões afetados, com o devido aviso de poder impressionar espetadores mais sensíveis, claro. E o pessoal hospitalar podia dar mais entrevistas, eles não estão nos hospitais para outra coisa, à semelhança dos seus chefes de ordens e sindicatos. Ou isto é um reality show ou não há liberdade de informação e reina alei da rolha!
A sério, não percebendo eu nada da pandemia, e tendo vós tanto saber acumulado, porque não fazemos um negócio: eu vou para as TV falar do que não sei e vossas excelências, com os esclarecidíssimos pivôs, pivôas e repórteres vão para o Ministério da Saúde, para os Hospitais, para os lares, para as urgências, para os laboratórios fazer o que as bestas que lá estão não conseguem fazer e que se está mesmo a ver que devia ter sido feito.