Carlos Matos Gomes
5 min readMar 20, 2022

Barriga de aluguer

A convite de Mário Tomé, meu amigo de há longa data, fui convidado para fazer uma apresentação por Zoom sobre a situação internacional resultante da invasão a Ucrânia a uma audiência constituída por militantes do BE que apresentaram teses à IV Conferência Nacional do BE.

Declaração de interesses: não tenho e nunca tive qualquer ligação política ao BE, como de resto a nenhum partido político. Estou em desacordo com muitas das suas posições em termos nacionais e internacionais. Fui convidado a expressar as minhas ideias no dia 19 de Março de 2022, fi-lo com toda a liberdade e respondi o melhor que sabia às questões que me colocaram. Decidi publicar uma síntese do que ali disse e para facilitar a leitura dividi-a em dois textos, um sobre as causas da guerra e outro sobre as consequências.

Causas da guerra (I)

Falemos da realidade. A invasão russa não é mais brutal do que tantas outras, das de Napoleão às de Hitler, para citar duas mais próximas e conhecidas na Europa. Não existe nenhuma prova de expansionismo russo: a Ucrânia foi russa durante séculos e pertenceu à União Soviética. A Rússia enquanto entidade central desmantelou a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e qualquer dirigente político, incluindo Putin, reconhece que o passado não volta e não é possível reconstruí-lo, nem ressuscitá-lo. Quanto à questão militar, qualquer cadete de uma Academia Militar é capaz de elaborar um estudo de situação que conclua pela incapacidade da Rússia realizar uma invasão para ocupar o Ocidente: nunca o fez, não tem meios para o fazer (basta ver as dificuldades em invadir e ocupar a Ucrânia) e não tem qualquer interesse em fazê-lo, pois não necessita de matérias-primas, nem de território, dois elementos de que dispõe em abundância. Invocar o expansionismo russo satisfaz os defensores do “eles são todos farinha do mesmo saco”, é cómodo, mas não contribui para perceber o presente nem o futuro que se prepara. É um argumento que serve a estratégia na origem da atual situação.

As causas da invasão da Rússia resultam do entendimento que os seus dirigentes têm da sua segurança, do papel da Rússia no mundo, da sua importância e do seu estatuto de superpotência ganho na II Guerra Mundial. Não resultam sequer das vantagens e lucros que a oligarquia ucraniana obteria ao integrar a União Europeia, porque a Ucrânia não cumpre nem estará em condições de cumprir as condições do Tratado de Copenhaga (Estado de Direito, transparência, Justiça, concorrência, Direitos humanos) nos próximos anos. As causas da invasão da Rússia não são diretamente atribuíveis a vantagens económicas de qualquer dos lados (os negócios seriam efetuados com integração na UE ou sem ela), resultam de uma perceção de ameaça militar, civilizacional e de estatuto internacional por parte dos dirigentes russos!

Os objetivos dos Estados Unidos são apresentados como a defesa da Liberdade, da Soberania, do Direito dos Povos à escolha das suas vias e opções. Princípios que, como se sabe, têm sido intransigentemente defendidos pelos EUA ao longo da sua história em Cuba, no Chile, no Iraque, no Afeganistão. Na realidade os objetivos dos EUA são claros: ocupar um território que lhe permita estender as suas fronteiras (recorrendo à figura jurídica de uma aliança ou de um acordo de proteção) até ao limite do território da Rússia. Ganhar uma base de onde possam ameaçar o inimigo que, no jogo de poderes mundiais, consideram mais fraco (a Rússia) para criar melhores condições para enfrentar o inimigo principal, a China, e no teatro decisivo, o Pacífico.

Uma invasão insidiosa — uma penetração de 2000 quilómetros!

Quando a URSS implodiu foi estabelecido um acordo que impedia os Estados membros do antigo Pacto de Varsóvia de integrarem a NATO. Olhando um mapa da Europa: a fronteira dos EUA/NATO encontrava-se então na zona do meridiano de Nuremberga, na Alemanha Federal (RFA), a 2000 quilómetros de Moscovo.

Rapidamente a Roménia, a Hungria, a Polónia, a Eslováquia, a Rep Checa e os estados bálticos aderiram à NATO e a Jugoslávia foi desmembrada. A fronteira dos EUA/NATO avançou cerca de 1000 quilómetros! A norte, de Berlim para Vilnius (Lituânia):1000 quilómetros e a Sul de Roma para Galati (Roménia): 1300 quilómetros. Sem um tiro e em violação de um acordo!

Agora, com a tentada integração da Ucrânia na NATO, a fronteira dos Estados Unidos avançaria mais mil quilómetros. Passaria e existir uma linha de fronteira direta, frente a frente, entre os EUA/NATO e a Rússia, uma fronteira como o Paralelo 38 entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul! Essa fronteira distaria 800 quilómetros de Moscovo (Donetsk–Moscovo 850 quilómetros). Moscovo ficaria ao alcance de mísseis balísticos táticos (TBM), de mísseis balísticos de curto alcance (SRBM) e até de mísseis de cruzeiro, seria um objetivo tático antes de ser estratégico! Em contrapartida a Rússia apenas podia retaliar com mísseis balísticos intercontinentais (ICBM) que têm uma trajetória que atinge um cume de 1200 quilómetros de altitude e que teriam de voar 8000 quilómetros em linha reta (distância de Moscovo a Washington).

Seria este o quadro de ameaças entre os Estados Unidos e a Rússia caso a Ucrânia passasse a estado vassalo (“aliado” na terminologia amiga da opinião pública) dos EUA! É este objetivo que a Rússia não aceita: que o vizinho, conhecido pelo negócio de contornos muito escuros das barrigas de aluguer das suas mulheres, sirva de barriga de aluguer para quem lhe pode dar um tiro à queima-roupa, enquanto ele só pode responder com uma arma que demora mais de meia hora a armar, mais outra para juntar o combustível e a ogiva e finalmente iniciar o aquecimento, a ascensão, o voo e a reentrada na atmosfera na zona do objetivo, duas ou três horas depois de ter sido atacada!

Além da ameaça real às grandes cidades e infraestruturas russas, este avanço da fronteira dos EUA/NATO propiciado com a inclusão da Ucrânia teria ainda uma outra vantagem para os EUA: obrigaria a Rússia a concentrar forças na fonteira Oeste e impedi-la-ia de se aliar à China quando ocorrer o confronto China — EUA. Uma manobra de matar dois coelhos com a mesma cajadada!

Os Estados Unidos poderiam assim conduzir a partir de uma testa-de-ponte na Ucrânia um ataque à Rússia a 8 mil quilómetros do seu intocável território de retaguarda. O mesmo aconteceria com o Canadá, parceiro desta situação vantajosa.

É neste jogo de xadrez travado na sombra em que nos encontramos: a Ucrânia é apenas um tabuleiro, uma barriga de aluguer. Expor estas realidades provoca a acusação de “putinismo”! As acusações de traição e heresia também fazem parte do histórico jogo de imposição da verdade-verdadeira, assim como as intimidações! A Inquisição é um exemplo entre muitos.

Este jogo da integração da Ucrânia na órbita militar americana tem todas as condições para acabar muito mal para as populações ucranianas e mal para os europeus, em geral, incluindo os russos. O povo da Ucrânia está a sofrer os horrores da guerra, conhecidos e explorados ad nauseam pela comunicação social na sua função de manipulação. Exploram emoções!

No dia 24 de Março, quando o presidente americano vier presidir à reunião da NATO a Bruxelas, as perguntas sérias e decisivas para terminar com o sofrimento dos povos que a propaganda explora seriam:

- Porque não declara que a Ucrânia não integrará a NATO e que os Estados Unidos não instalarão ali bases militares?

- Não considera que as cerca de oitenta bases americanas existentes do Mar Negro ao Mar Báltico, na Roménia, na Hungria, na Polónia, na Eslováquia na Rep Checa, nos estados bálticos equipadas com mísseis balísticos de curto e médio alcance são suficientes para “conter” o expansionismo russo em direção a Paris, a Bruxelas, a Londres?

- Os EUA querem ou não garantir essa segurança à Rússia?

Carlos Matos Gomes
Carlos Matos Gomes

Written by Carlos Matos Gomes

Born 1946; retired military, historian

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