As estrelas do Estado Novo

Carlos Matos Gomes
7 min readOct 24, 2022

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Extinguiu-se no dia 23 de Outubro de 2022 a última estrela política do Estado Novo, Adriano Moreira. Ele fez parte da constelação de pensadores e atores que dotaram o Estado Novo com um pensamento para além do corporativismo de matriz fascista, do integrismo de raízes miguelistas, do beatismo. Adriano Moreira pertenceu a um grupo de políticos talentosos e ambiciosos que subiram a pulso em termos sociais, seguindo o percurso de Salazar, que utilizaram a aderência aos meios e estruturas do corporativismo para ascender individualmente e que retribuíram essa escalada dotando o regime de iluminações que ultrapassassem os cirios das igrejas e as sombras dos mortos vivos que se sentavam na Assembleia Nacional e na Câmara Corporativa.

O grupo inorgânico a que Adriano Moreira pertenceu conseguiu apresentar o Estado Novo e Portugal como atores internacionais de relevo em três grandes momentos da História da primeira metade do século vinte: a Guerra Civil de Espanha, a Segunda Guerra Mundial e o Movimento Descolonizador.

A Guerra Civil de Espanha teve como personagem de primeiro plano o embaixador Pedro Teotónio Pereira, o homem enviado por Salazar para junto do governo de Franco, em Burgos, o segundo embaixador a apresentar credenciais, após o Núncio Apostólico da Igreja Católica e o primeiro embaixador em Madrid após a vitória franquista. Teotónio Pereira iria conseguir alcançar o objetivo que o Portugal de Salazar recebera dos ingleses, o de evitar e a entrada da Espanha na Segunda Guerra Mundial aliada da Alemanha nazi. Seria embaixador no Brasil, nos Estados Unidos e em Londres no período de antes da guerra, durante e no pós-guerra. Contribuiu para manter Portugal na órbita dos Aliados e para a entrada no clube da NATO. Não foi tarefa fácil fazer o Portugal rural, beato e antiliberal de Salazar ser admitido neste grupo. Os Aliados (em particular os americanos) entenderam através de Pedro Teotónio Pereira que Portugal não era Salazar (os ingleses, esses sabiam que Salazar negociaria tudo, incluindo os princípios (além do volfrâmio) para se manter no poder).

Outra personagem marcante da pequena fação com individualidade dentro do regime do Estado Novo é o embaixador Armindo Monteiro, que em Londres conseguiu ir mantendo as pontes entre Portugal e a Inglaterra, apesar da queda germanófila e pró-Eixo de Salazar. Duarte Pacheco será um modernizador de infraestruturas, que substituiu os conventos por escolas modernas, melhorou as comunicações e eletrificou parte do país. Um agitador despesista, na opinião dos bonzos do regime.

No pós-Segunda Guerra são importantes as figuras de transição que permitiram ao Estado Novo sobreviver entre os regimes parlamentares instituídos na Europa Ocidental pelos Estados Unidos, o caso de Costa Leite (Lumbralles), um dos lentes de Coimbra que acompanhou Salazar, vindo do integralismo e que conduziu o processo de associação de Portugal à Europa que daria origem à CEE; de Supico Pinto, ou de Santos Costa (inimigos), que constituirão com Albino dos Reis e Mário de Figueiredo e o cardeal Cerejeira o círculo mais próximo de Salazar.

Mas, a partir da revisão da Constituição de 1933, em 1951, com a África e as colónias transformadas em Províncias Ultramarinas, por via da incorporação do Ato Colonial e da ameaça das Nações Unidas e do seu comité de descolonização, emergem duas figuras de uma geração mais nova, a de Franco Nogueira e a de Adriano Moreira. Serão eles que marcam o conflito do regime do Estado Novo com os “ventos da mudança”, como o primeiro ministro inglês Macmillan classificou o movimento descolonizador, o desejo de libertação dos povos do chamado Terceiro Mundo das potências coloniais europeias.

Nem Franco Nogueira, nem Adriano Moreira eram salazaristas, isto é, devotos do homem providencial e leitores místicos da História. Não acreditavam que Portugal tivesse uma missão divina (Franco Nogueira menos místico do que Adriano Moreira). Eram dois racionalistas, dois pragmáticos, dois homens de pensamento livre, dois jogadores de xadrez. Separava-os a leitura do futuro de Portugal e da Europa.

Para Franco Nogueira, a questão colonial devia ser tratada como uma afirmação política decisiva, e considerava que Portugal tinha condições para congregar apoios que lhe permitissem impor uma solução de Estado pluricontinental, que serviria a estratégia mundial dos Estados Unidos, herdeiros do imperialismo inglês e garantiria um lugar de relevo de Portugal na Europa. Daí que Franco Nogueira fosse, e seja ainda seja considerado o mais intransigente defensor do “Ultramar Português”. Ele era um intransigente defensor da política colonial e da guerra porque concluíra racionalmente que apenas a demonstração de intransigência, de afirmação, de disposição de lutar pelo tudo ou nada garantia o apoio à sua política quer por parte dos aliados, quer por parte da sociedade portuguesa, quer até pelo Terceiro Mundo.

Franco Nogueira abandona o governo com a ascensão de Marcelo Caetano, certo de que este iria dar a entender abertura para negociar uma solução para as colónias (o que de facto ocorreu através da aliança «Alcora» e dos contactos com o PAIGC, o MPLA e a Frelimo) e transmitir uma ideia de fraqueza. Franco Nogueira sabia, até pela longa permanência em Inglaterra, que Portugal não dispunha de condições para federar uma Commonwealth (daí a sua crítica nas suas memórias às teses de Spínola).

Pelo seu lado, Adriano Moreira tinha desde o final dos anos 50, dos seus tempos e trabalhos em Nova Iorque, da convivência com Mondlane e outros líderes africanos pró-ocidentais a mesma ideia geral de Macmillan, de acompanhar os ventos da mudança para não ser derrubado por eles. Adriano Moreira propõe uma política de desenvolvimento das colónias que as levasse a uma independência integrada no Ocidente. Procurou realizar o seu projeto através da educação, de que a criação de verdadeiras universidades em Luanda e Lourenço Marques são o exemplo (e que motivaram o conflito com o governador de Angola, Venâncio Deslandes, de que resultaram as demissões de ambos), da nacionalização das riquezas de África (integrando os colonos na sua exploração), e daí o conflito com a autonomia da Diamang, um estado dentro do Estado, um Estado estrangeiro, privado, pertencente à De Beers sul-africana, esta por sua vez integrada no conglomerado mineiro Anglo-American Corporation (onde se juntavam os interesses e os poderes das duas mais poderosas famílias do planeta, os Rockfeller e os Rothschild).

Adriano Moreira sai do salazarismo pelo seu anticolonialismo integracionista (daí ser considerado adepto das teorias do lusotropicalismo de Gilberto Freire, o que não julgo corresponder ao seu pensamento), fruto da sua racionalidade; enquanto Franco Nogueira não integra o marcelismo pela sua visão da intransigência na defesa do colonialismo, no aprofundamento da presença e do domínio da Europa sobre partes de África, não como um direito histórico, mas como um interesse político e estratégico, uma presença através de Estados Brancos, que tornariam a Europa um ator mundial do mesmo nível dos EUA e da URSS e que poderia ocupar os lugares em África onde a China estava interessada em ter uma presença. (A guerra na Ucrânia é mais um episódio desta luta entre grandes espaços, os grandes espaços que Adriano Moreira utilizou como ferramenta de análise estratégica).

Adriano Moreira continuará a sua vida pública no ensino e no ensaísmo político, com uma perspetiva estratégica baseada na hierarquia do poder dos Estados, na divisão dos espaços de influência e na análise do globalismo como ele se nos apresenta nos nossos dias.

Franco Nogueira dedicou-se ao memorialismo e à análise do passado, procurando uma justificação para a possibilidade do presente ser distinto do que foi.

Ambos contribuíram para percebermos o caminho que a sociedade portuguesa percorreu e fizeram-no com grande elevação intelectual, com argumentos racionais, com factos, com interpretações fundadas em doutrina sólida e utilizando método e rigor.

Foram personagens intelectualmente independentes, politicamente coerentes, que afrontaram os poderes ou a eles aderiram quando entenderam que o deviam fazer e que essa atitude era a que melhor servia o seu país.

As críticas que se lhes pode fazer de “homens do regime”, críticas que constituem um direito que todos conquistámos com o 25 de Abril, são respeitáveis, mas nem um nem outro foram meros intérpretes de Salazar, nem, menos ainda, de Marcelo Caetano, e essas críticas remetem-me, a mim, para uma outra, para a crítica que faço aos absolutos, para a crítica da desumanidade inerente à exigência da pureza dos grandes atores políticos, do Príncipe, na escrita de Maquiavel.

Adriano Moreira, como Franco Nogueira, como, já agora, António Spínola, ou Costa Gomes, ou até Craveiro Lopes, ou mesmo Humberto Delgado, ou Norton de Matos entre tantos outros portugueses ilustres uns, outros nem tanto, refletem aquilo que é a tomada de consciência ética dos homens e mulheres ao longo da vida, do que devem e não devem fazer, onde se devem situar, que valores defender.

A crítica baseada no julgamento da História (uma falácia) e na moral (outra falácia): «estiveram do lado errado da História» (a História não conjuga a moral, na medida em que a moral depende das circunstâncias de tempo, de lugar, de necessidade, de desejo) é muito tentadora para quem se sente amparado pela fé de pertencer tanto ao grupo dos bons, como a uma claque ou a um gangue, mas não é uma atitude nem uma posição intelectual que contribua para entendermos o mundo e a sociedade em que vivemos. É uma posição acientífica, baseada no preconceito e na crença de ser membro do povo eleito, dos que foram bafejados pela iluminação — na realidade o tipo de pensamento dos fanáticos, dos exaltados, dos racistas de vários tipos.

Os novos e velhos fascismos, com a componente evangélica atualmente associada, são as manifestações mais visíveis da intransigência e da violência que os defensores (falsos) da verdade absoluta propõem como meio de defenderem os velhos privilégios.

As acusações de má escolha e de mau comportamento histórico remetem-me para a passagem bíblica de que gosto particularmente, quando o Cristo, pregador e condutor social, desafia os puros (falsos, os fariseus), desafiando-os: Quem de vós nunca pecou que atire a primeira pedra!

Há muitos apedrejadores, muitos descendentes dos que atiravam as pedras das ameias chamadas matacães. A grande questão é que o outro é sempre igual a nós.

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Carlos Matos Gomes
Carlos Matos Gomes

Written by Carlos Matos Gomes

Born 1946; retired military, historian

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