Carlos Matos Gomes
4 min readMay 9, 2021

As Cassandras portuguesas são feias

“A Justiça do antigo regime era mais séria do que a de agora” António Barreto, Sol, 8 Maio 2021

Na mitologia grega, Cassandra e o seu irmão gémeo, Heleno, ainda crianças, foram ao Templo de Apolo brincar. Brincaram até ficar demasiado tarde para voltarem para casa e dormiram no templo. Na manhã seguinte, a ama encontrou as crianças a dormir, enquanto duas serpentes passavam a língua pelas suas orelhas. Como resultado os ouvidos dos gémeos tornaram-se tão sensíveis que lhes permitiam escutar as vozes dos deuses. Cassandra tornou-se uma jovem de magnífica beleza, devota servidora de Apolo que lhe ensinou os segredos da profecia. Tornou-se uma profetisa, mas por traições de amores sofreu a maldição de que ninguém jamais viesse a acreditar nas suas profecias ou previsões. Passou a ser considerada como louca ao tentar comunicar à população troiana as suas previsões de catástrofe e desgraça.

Não estou seguro que as Cassandras portuguesas sejam loucas, vejo-as como deliberadamente corruptas, mas parecem-me feias. Quanto a beleza quem quiser que aprecie os predicados dos Tavares, dos Raposos, das Bonifácios, das Helenas, dos Ferreiras, dos Lourenços, das Avilez, dos Mendes, dos Barretos… Já quanto à loucura, o perigo destas Cassandras é a sociedade não as considerar loucas e até lhes conceder algum crédito a elas que nunca acertaram em qualquer profecia! A elas que estão abaixo da racionalidade silogística de causa e efeito das velhas leitoras de sinas na palma da mão, ofendem o clássico argumento de Aristóteles: Todo o homem é mortal, Sócrates é homem, logo Sócrates é mortal. Estas Cassandras resumem as suas profecias à vulgata do: Isto está tudo mal! Só neste país! Ai os bons velhos tempos!

Ontem (dia 8 de Maio de 2021) António Barreto, uma das mais conhecidas e antigas Cassandras portuguesas, a prever catástrofes desde 1974, data em que retornou do templo suíço, anunciou com espavento num jornal de refúgio que isto de silogismos era obra de comunistas (subentende-se… ), brindou a populaça com a sentença de que a justiça do regime de Salazar era mais séria — logo mais fiável e mais favorável aos portugueses — do que a justiça do regime democrático cujo caminho foi aberto em 1974. É uma opinião que se ouve tanto em barbeiros e táxis como na Quinta da Marinha. Resta a prova do silogismo (do polígrafo da moda):

A análise séria dos sistemas de governo tem desde sempre considerado como elemento central na avaliação a administração da justiça. A distinção entre o tirano, o detentor do poder absoluto e o democrata, a democracia, assenta no Ocidente de matriz greco-latina nos direitos das gentes (coletivos e individuais) a uma justiça baseada na lei, a não haver punição sem lei, na prova, no recurso, na defesa, na igualdade e na equidade…

Silogisticamente, se Barreto afirma que justiça da Ditadura era mais honesta (isto é, baseada em direitos mais respeitados e processos mais conformes à boa reparação de ofensas) que a do regime de democracia liberal e representativa atualmente em vigor, a Ditadura e o salazarismo eram, na sua essência, conceptualmente, e na sua prática, um Estado de Direito. Barreto alapou-se na democracia orgânica! Um tribunal plenário era um fórum de justiça e o Inspetor Sachetti, da PIDE, um guardião das liberdades e formalidades jurídicas na investigação de crimes! Um justiceiro sério!

Daí não se compreender (questão de racionalidade) que Barreto se tenha exilado na Suíça por motivos políticos (exibindo um estatuto de resistente antifascista de que se tem socorrido e que lhe tem garantido a vidinha) e tenha regressado a um país cujos militares realizaram um golpe de Estado que, segundo ele, produziu um regime de menores direitos e piores práticas do que o salazarismo, o regime anterior, no seu dizer!

Não se entende também, a não ser por cobardia, que se tenha eximido a ir cumprir o dever de combater na guerra em África, que o regime de boa justiça de Salazar (a seriedade de Salazar, o grande mito dos salazaristas) e de Caetano determinaram como desígnio patriótico e de direito, mesmo contra o direito dos africanos a tratarem de si. A talhe de foice e como apontamento sobre a boa justiça do Estado Novo, a justiça nas colónias era, no subtexto de Barreto, uma boa justiça (séria), que incluía o trabalho forçado, os castigos corporais e a impossibilidade de os africanos acederem à justiça! Ninharias que não atrapalham o discurso de Barreto. O objetivo é corroer a atual forma de governo e vale tudo para isso…

Barreto, como as outras Cassandras, andam quase há 50 anos a profetizar desgraças nas colunas de opinião e a chamar sub-repticiamente todos os dias estúpidos aos portugueses em geral. Os menos dispostos a darem boa cavalaria a tais ginetes, onde me incluo, os que não enfiam os seus barretes devolvem-lhe como aqui faço as vilezas e as marteladas na racionalidade, afirmando que eles são meros impostores pagos para corromperem o regime de direitos (repete-se: imperfeito) em que vivemos. Eu gostaria que o regime fosse melhor, ele quer outro, o sério, o anterior.

De novo: Estas Cassandras são vermes que apodrecem o interior do regime de direitos em que vivemos e que, imperfeito que seja, é um estado de Direito. Eles pretendem substituí-lo, agora já sem máscaras, desconfinadamente, por uma ditadura dos seus mandantes. As Cassandras que enxameiam a comunicação social e manipulam a opinião pública, como a Cassandra da mitologia, não profetizam para salvar Troia, mas para facilitar o caminho ao cavalo que leva a destruição da cidade no seu interior.

É para cumprirem a sua missão que os patrões da imprensa abrem as portas a estas aventesmas, que dão pontapés ao Aristóteles, à sua lógica, à sua racionalidade, como se o pensamento do grego fosse herético e merecesse a fogueira. Eles são pagos para nos picarem os miolos e nos sujeitarem à sua injustiça. A sério.