Ars Moriendi

Carlos Matos Gomes
4 min readOct 6, 2023

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A justa luta dos funcionários da saúde de todas as graduações e especialidades vista à luz da história e do desejo de salvação dos homens, mulheres e crianças.

Antecipando as preocupações dos atuais profissionais da doença, e da natural preocupação dos vivos em adiar a morte e em alcançar uma boa pós-morte, a Igreja Católica publicou cerca de 1450 um tratado sobre o assunto a que deu o título de Ars Moriendi, A Arte de Morrer, ou Arte da Boa Morte, segundo as traduções, com autoria atribuía a um tal Dominicus Capranica (1400–1458), que terá reunido documentos com origem no Concílio de Constança (1414–1418) e devido à influência de Jean Gerson (1363–1429), erudito e Chanceler da Universidade de Paris.

Domenicus Capranica e Jean Gerson podem ser considerados os antecessores dos atuais promotores da Arte da Boa Morte reunidos nas declarações e proclamações das santíssimas ordens e sindicatos, que, em meu entender, muito têm contribuído para orientar as pessoas a alcançar uma “boa morte”, longe dos hospitais públicos.

Para caracterizar uma “boa morte” é preciso olhar para seu oposto e indagar sobre o que é tido como uma “má morte”. Segundo Ariés, que não desmente os atuais diplomados, a morte súbita “era uma morte feia e desonrosa, aterrorizava, parecia estranha”, bem como a morte clandestina “que não teve testemunhas nem cerimónia, a do viajante na estrada, do afogado no rio, do desconhecido cujo cadáver se descobre à beira de um campo, ou mesmo do vizinho fulminado sem razão”. A morte não partilhada com a sua coletividade ou que escapasse aos ritos cristãos representaria o que não deveria ser evitado, na medida do possível. Os atuais senhores doutores fazem os possíveis para o evitar. Morrer entre os seus, em casa, passou a ser o novo normal.

Para não haver surpresas, os atuais promotores da arte da boa morte no Serviço Nacional de Saúde escusam-se a assumir responsabilidades através da entrega de uma bula na administração do estabelecimento onde estão afetados. Fecham urgências (para onde são levados os que correm maiores riscos de mortes súbitas) e recusam horas extraordinárias. A vida e a morte têm horário. E ainda nos rimos do presidente de uma ignota junta de freguesia que terá publicitado um aviso de que não eram autorizadas mortes ao fim-de-semana porque o coveiro não trabalhava ao sábado e ao domingo! O malandro fazia-se doutor e recusava horas extraordinárias! De morto ninguém passa! É uma verdade científica. As certidões de óbito são de eterna validade .

O que propõem as confrarias dedicadas aos males de corpo e de espírito para, na falta dos seus serviços, dar uma boa morte aos necessitados? Na ausência de resposta prática, e porque os representantes apenas se referem a si, às suas horas extraordinárias, aos seus euros por hora, às suas carreiras aqui lhes deixo, e aos candidatos a bons mortos, as velhas recomendações da Idade Média: primeiramente, o “utente” (designação prática) deve acreditar, como um bom cristão, que morre na fé de Cristo e na harmonia e obediência da sua Igreja. Em segundo lugar, deve reconhecer que ofendeu gravemente Deus, e como resultado disso precisa aflingir (sofrer), daí que não lhe devam ser prestados cuidados urgentes, nem paliativos!. Terceiro, o utente, munido de Cartão do Cidadão, claro, deve prometer corrigir-se a si mesmo em verdade e nunca pecar de novo se sobreviver. Quarto, por conta de Deus, isto é, mal transite para o frigorífico da morgue, o utente deve perdoar aqueles que o ofenderam e ele deve procurar ser perdoado por aqueles que ele ofendeu. Quinto, o malandro que se apresenta na urgência, deve devolver aquilo que roubou e pagar o que deve. Sexto, deve entender que Cristo morreu a seu favor e que ele não pode ser salvo por outro ente (daí a raiz metafísica das greves médicas). As Ordens e os Sindicatos não são anjos da guarda e não podem ser o caminho da salvação, pois esse é percorrido com o auxílio do mérito da paixão de Cristo, da qual o utente deveria agradecer a Deus, tanto quanto for capaz, e não com reclamações, exigências de exames complementares, de pastilhas, unguentos, bisturis, auscultações, oxigénio, soro, transfusões. Entretanto, antes da vacina contra a gripe e o covid, confessem-se e cumpram penitências, como já recomendava o tratado De vera et falsa poenitentia (Sobre a verdadeira e falsa penitência) do século XII.

Termino esta prédica de conselho às confrarias dos santos padroeiros da nossa saúde, e aos penitentes à sua mercê, apesar do juramento de Hipócrates, com uma nota de humor familiar, a do meu tio-avô Guilherme de Matos Gomes, em cuja quinta nos arredores de Sernache do Bonjardim passei várias boas férias, uma quinta, de Vale Ferraz, de onde retirei o pseudónimo literário de Carlos Vale Ferraz. Contava ele, no regresso de um funeral, que este teria terminado com a firmação de uma carpideira: Não desejo mal a nenhum morto! Mas não quero que falte trabalho ao meu marido! — E qual era o trabalho do marido: barbeiro de mortos!

Os senhores doutores e oficiais de artes correlativas também não querem que falte trabalho a outros profissionais. Aguarda-se a manifestação de apoio dos cangalheiros e agentes funerários às atuais greves dos promotores da boa arte da morte.

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