Apocalíticos e integrados (ou alumbrados?)~
Uma reflexão sobre um texto de Umberto Eco
A escrita de um romance é um processo individual. Para mim cada romance teve e tem o seu processo de escrita. O que há de comum em todos? Partir de uma ideia, que originará um tema. Para desenvolver esse tema procuro ideias e saberes noutros escritores, investigadores, em notícias, vou navegando à descoberta. Por vezes regresso a paragens esquecidas. Hoje reencontrei as paisagens de Umberto Eco num texto «Apocalíticos e Integrados».
É neste ponto que nos encontramos e que as grandes fábricas de produzir reações (também podia ser rações) e modular o pensamento das massas — as máquinas de conteúdos para uso doméstico e salvação pública — se esforçam por vender. Os noticiários são hoje um programa de televendas.
Umberto Eco sistematizou a técnica de vender produtos formativos, dividindo-os em primeiro lugar em cultura destinada às massas e cultura destinada a elites. Do género produtos de marca branca e produtos de grande marca, de griffe. Escreve ele: “A cultura de massa é a anti cultura, mas como nasce no momento em que a presença das massas na vida social e política se tornou o fenómeno mais evidente no atual contexto histórico, a “cultura de massa” não indica uma aberração transitória e limitada: tornou-se o sinal de uma queda irrecuperável, ante a qual o homem de cultura (último vestígio da pré-história, destinada a extinguir-se) pode dar apenas um testemunho extremo, em termos de Apocalipse.
Por outro lado, a resposta otimista do integrado (do neoliberal) é: já que a televisão, o jornal, a rádio, o cinema, o romance popular agora colocam os bens culturais à disposição de todos, tornando leve e agradável a absorção das noções, a receção de informações, vivemos numa época de alargamento da área cultural, onde finalmente se realiza, em amplo nível, com o concurso dos melhores, a circulação de uma arte e de uma cultura “popular”. O mercado está a funcionar!
Para o integrado não existe o problema de essa cultura (a de massas) sair de baixo ou vir confecionada de cima para consumidores indefesos. É essa falsa neutralidade que ele pretende justificar e promover.
O motivo de inquietação (de quem se inquieta com estas manipulações sofisticadas) é apagar a distinção entre profetas apocalíticos e profetas integrados. Apesar de alguns apocalípticas ainda sobreviverem em nichos do “mercado” da comunicação, difundindo teorias sobre a decadência, são os integrados reprodutores do discurso dominante que emitem as suas mensagens quotidianamente em todos os níveis e estações. O domingo é um dia particularmente representativo do mercado da “palavra” e da “mensagem”!
No fundo, como é observável por quem estiver atento aos espetáculos informativos, que incluem comentários e mensagens sublimares, a imagem do Apocalipse que deles ressalta integra-se no discurso dos que promovem a resignação e a integração no rebanho, na cultura das massas. Zelenski, é, na cultura de massas, o que o Conde de Monte Cristo foi na cultura erudita. Um jogador de futebol é, na cultura de massas, o correspondente ao mosqueteiro Athos! O romance Miguel Strogoff, o correio do czar, de Júlio Verne, seria hoje queimado na Ucrânia e confundido com uma receita de strogonoff, no Ocidente e apresentado num programa de gastronomia popular.
A cultura de massas, que substitui a cultura enquanto atividade do espirito, tem, no entanto, a diferença para esta como a que existe entre um pão fabricado numa máquina Bimby, de comida instantânea, e o pão cozido num forno de lenha. A cultura de massas queima o tempo. Daí a necessidade de substituir os heróis rapidamente. A solução foi incluí-los ao molho num saco de lixo que designam de “Famosos”.
Hoje, diante de um ecrã, estamos sujeitos, nas situações menos evidentes de manipulação, a enfrentar duas faces de um mesmo problema: Vão fornecer-nos uma mistela — um rancho, a diferença é que apenas alguns têm consciência disso, as massas acreditam que lhes vão servir uma “iguaria”, como dizem as meninas apresentadoras de televisão.
As mensagens transmitidas por agentes dotados de conhecimento científico não conseguem ter um discurso autónomo e são tomados como o mais sofisticado produto oferecido ao consumo de massas! Foram integrados.
Então, o título do texto de Umberto Eco “Apocalípticos e integrados”, não sugeriria a oposição entre duas atitudes, mas a sua complementaridade. Estamos perante a vitória completa da integração. No fundo, o apocalíptico consola o destinatário da mensagem, leitor ou espetador, “porque lhe permite entrever, sob o derrocar da catástrofe, a existência de uma comunidade de “super-homens”, capazes de se elevarem, nem que seja apenas através da recusa, acima da banalidade média. No limite, a comunidade reduzidíssima — e eleita — “de quem escreve “ e de quem lê, nós dois, você e eu, os únicos que compreendem, e estão salvos: os únicos que não são massa”. Cito Umberto Eco.
Quanto aos “super-homens” Umberto Eco utilizou a figura pensando na malícia com que Gramsci insinuava que o modelo do super-homem nietzscheano se poderia individuar nos heróis dos folhetins oitocentista e hoje o que temos são heróis de videojogos, da Marvel ou outros e ventríloquos televisivos.