Amílcar Cabral e a Ordem da Liberdade — a visão do futuro de Marcelo Rebelo de Sousa
Dia 10 de Dezembro, no âmbito de uma visita a Cabo Verde para participar na cerimónia de doutoramento Honoris Causa a título póstumo de Amílcar Cabral, o presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, condecorou com o colar da Ordem da Liberdade o fundador do PAIGC, o partido independentista da Guiné e Cabo Verde.
A Ordem da Liberdade é uma ordem honorífica portuguesa, criada após o 25 de Abril de 1974, que se destina a distinguir serviços relevantes prestados na defesa dos valores da civilização, em prol da dignificação do Homem e à causa da liberdade. A Ordem da Liberdade pode ser atribuída a entidades portuguesas e estrangeiras.
Amílcar Cabral cumpre com distinção os requisitos. Apenas por curiosidade, à data da morte e durante toda a sua vida, Amílcar Cabral foi oficialmente cidadão da República Portuguesa! Mais, foi um cidadão da luta pela dignidade de todos os povos do mundo, em particular dos que estiveram sujeitos ao domínio do colonialismo. No pós-Segunda Guerra Mundial, como resultado da nova ordem internacional, da perda de centralidade da Europa, da emergência de novos valores entre os povos do mundo, impôs-se o Movimento Descolonizador como novo paradigma e o colonialismo foi considerado pela Assembleia Geral das Nações Unidas um crime contra a humanidade!
Amílcar Cabral lutou como um dos líderes mais respeitados do Movimento descolonizador contra esse crime, foi um defensor dos direitos dos povos e dos homens, um combatente pelos novos valores, um símbolo do reconhecimento da igual dignidade de todos os seres humanos e é e foi enquanto mobilizador de princípios essenciais, um património valioso de toda a Humanidade, e não só da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Cabral bateu-se pela liberdade dos seus povos, mas também pelos de todo o mundo, porque a sua visão era universal, embora se inscrevesse numa corrente minoritária de pensamento e de ação entre os nacionalistas do seu tempo. Cabral abriu novas perspetivas na abordagem da liberdade pós-colonial, com amplas repercussões. Amílcar Cabral, tal como o angolano Mário Pinto de Andrade, defenderam, em distonia com o pensamento dominante dos líderes africanos,uma perspetiva universal do Homem, considerando que todos os povos tinham história e cultura, o que ia contra uma doutrina longamente dominante da ausência de história dos africanos antes do seu contacto com os europeus, que justificou a escravatura, por exemplo, o trabalho forçado, a recusa de encontrar entre eles uma cultura respeitável, o que conduziu à justificação do domínio colonial como uma ação “civilizadora” , mas Amílcar Cabral também agiu e pensou contra as novas teorias da construção do “homem novo africano”. Amílcar Cabral merece o respeito dos portugueses, por ser um dos seus e por ser uma figura universal. Ele foi, e é importante recordá-lo, considerado pela comunidade de historiadores ingleses e pela BBC (BBC World Histories Magazine) classificado em segundo lugar numa lista dos líderes notáveis que exerceram o poder e tiveram um impacto positivo na humanidade, a seguir a Ghandi!
Tendo sido a guerra colonial que Portugal travou desde 1961 em África a causa primeira que conduziu ao 25 de Abril de 1974 e ao derrube do regime de ditadura e de colonialismo, tendo sido a questão colonial o pilar onde assentou a política do Estado Novo e a estrutura que sustentou o regime construído por Salazar à sua imagem a partir da aprovação da Constituição de 1933, do Ato Colonial e da Concordata com a Santa Sé, sendo Amílcar Cabral um dos mais consequentes lutadores anticoloniais ele é, por consequência, um lutador de maior relevo pela instauração liberdade política e cívica em Portugal e contra o regime de ditadura. Cabral foi um oposicionista à ditadura em Portugal, uma ação que desenvolveu juntamente com outros portugueses democratas e antifascistas, nascidos em Portugal ou nas suas colónias.
Acresce que Amílcar Cabral em nenhum momento, nos seus escritos e intervenções, confundiu a luta pela independência das colónias, a luta contra a subjugação, a luta contra o colonialismo português, contra o sistema colonial com o povo português. Cabral dedicava um grande afeto pelo povo português, a que pertencia por cultura e por nascimento — em termos jurídicos ele era português por jus solis (nasceu numa terra portuguesa — Bafatá, na Guiné Portuguesa — e por jus sanguinis (os pais eram cidadãos portugueses). Negar a qualidade de português a Amílcar Cabral só pode ser feito com recurso a argumentos racistas, e argumentar que ele seria um português traidor porque queria ser independente não altera a condição de que ele seria português até à alteração do estatuto do território onde nascera, à semelhança, aliás, do que aconteceu com os cidadãos ingleses que participaram na Independência dos Estados Unidos (Fouding Fathers) e foram ingleses a colónia americana ser reconhecida pelo Reino Unido.
Amílcar Cabral, como Agostinho Neto, Mondlane e Machel, entre outros, conduziram uma guerra não contra Portugal, mas contra um regime que recusava ouvir a vontade dos seus cidadãos e lhes impunha a subjugação em nome de fantasiosos direitos históricos, ou, no mínimo muito discutíveis, mas que haviam sido desenvolvidos por técnicos de propaganda como António Ferro e expostos na Exposição Colonial e na Exposição do Mundo Português para se justificar e legitimar. De qualquer modo, o facto de um português liderar uma insurreição armada contra o regime vigente num dado momento não configura uma traição, nem é um facto novo na História de Portugal, são situações recorrentes, como a das lutas do Prior do Crato, a da Restauração, e a mais prolongada e sangrenta, a da guerra que opôs liberais e absolutistas, devida, em boa parte à independência do Brasil. Paiva Couceiro lutou através de ações armadas contra o regime republicano e não foi considerado nem traidor, nem estrangeiro. Os descendentes do rei absolutista que desencadeou a mais sangrenta luta entre portugueses são portugueses com todos os direitos democráticos e bastantes vénias.
A talhe de foice, a guerra colonial portuguesa tem também uma componente de guerra civil, de portugueses contra portugueses, e poderia ter sido evitada, como foi no Brasil, se Salazar e Marcelo Caetano, se as forças políticas e sociais cujos interesses sustentavam o regime de Lisboa, beneficiárias de rendas coloniais, tivessem tido a inteligência e a visão do futuro de negociar as independências, preservando o essencial da cultura comum, como Amílcar Cabral defendeu, manifestando grande admiração pela língua portuguesa e propondo a construção, após a independência da Guiné, as mais sólidas relações com Portugal.
O papel de Amílcar Cabral na instauração de um regime anticolonialista, de liberdade e direitos cívicos foi, aliás, reconhecido pelo general António de Spínola, o comandante-chefe das Forças Armadas na Guiné, que entrou em rota de colisão com Marcelo Caetano por pretender estabelecer contactos com o chefe do PAIGC através do presidente do Senegal, Leopold Senghor.
Amílcar Cabral e Spínola são dois chefes políticos com responsabilidades militares que entendem ser necessário derrubar a ditadura e instaurar um regime de liberdades democráticas para resolver o impasse da guerra colonial e o impasse histórico em que Portugal se metera.
Spínola lamentou sinceramente a morte de Amílcar Cabral, testemunhei-o na Guiné. Pelo seu prestígio intelectual e enquanto lutador coerente pela liberdade e a dignidade dos povos, em particular os de Portugal e os das suas colónias, Amílcar Cabral seria o melhor interlocutor para o futuro das relações de Portugal com África, uma opção estratégica que deveria ser assumida pelo Estado Português.
Outro dos grandes líderes de origem portuguesa que mereceria as honras da Ordem da Liberdade concedida por Portugal seria Aquino de Bragança, o goês-moçambicano que defendeu a integração do Estado Português da Índia na União Indiana, com autonomia e manutenção dos laços culturais com Portugal, que seria o secretário da CONCP (Conferência das organizações nacionalistas das colónias portuguesas), diretor da revista Afrique-Asie e conselheiro do presidente Samora Machel, de Moçambique, ao lado de quem morreu no desastre aéreo, o arquiteto dos acordos de Incomati, com a África do Sul e militante das ligações privilegiadas de Moçambique com Portugal.
Ficará para uma próxima oportunidade porque Marcelo Rebelo de Sousa tem a visão do essencial das opções estratégicas de Portugal e sabe quem foi Aquino de Bragança.