Ainda houve Jogos!
Os Jogos Olímpicos de 2020 terminaram no Verão de 2021. Os seus patrocinadores esticaram o calendário gregoriano para escapar aos efeitos catastróficos causados por um reles vírus e passaram as atuações dos estádios para os estúdios de televisão. O vírus reduziu a um videojogo o grande espetáculo dos Jogos Olímpicos. Mas houve Jogos em casa dos consumidores planetários! Era o que interessava. Quanto aos próximos não sabemos. Valha-nos a inteligência artificial!
Os Jogos 20–21 foram a vitória de Pirro dos que iludem os seus semelhantes sobre a vitória da humanidade contra a natureza. Desta vez a chama olímpica ainda conseguiu tornar invisíveis as fontes das calamidades que inundam a Europa e a Ásia, do degelo nas zonas polares, dos incêndios na Austrália, na Califórnia, na Grécia, das secas, das migrações de milhões de seres sem condições de sobrevivência. Desta vez os senhores dos Jogos ainda conseguiram calar qualquer manifestação que acusasse as políticas que conduziram ao desastre resultante da sobrexploração de recursos naturais e da iníqua distribuição deles. Nem sequer foi permitido um minuto de silêncio a recordar as duas bombas atómicas lançadas sobre o Japão, a prova de que é possível aos dirigentes da humanidade conduzirem-na a um harakiri apocalítico e evitar reclamações.
Para mim, espetador intermitente e impotente, os dois grandes momentos vendidos pelos promotores destes jogos aos seus clientes foram a deserção de uma atleta bielorussa, e a saúde mental de uma ginasta americana.
O aproveitamento político da deserção de atletas é um número conhecido dos “bons velhos tempos” do Muro de Berlim, da guerra fria entre os Estados Unidos e a URSS, mas esta revela que o mundo mudou. A deserção democrática foi ensombrada pela notícia, embora num recanto da imprensa, que borrou a pintura da clássica vitória do Bem sobre o Mal: Após 20 anos de presença dos Estados Unidos no Afeganistão, estes retiraram cabisbaixos e os Talibã ocuparam Zaranj, uma cidade capital de província que lhes confere a posse de vários postos fronteiriços. Resta a inquietante mensagem sublimar: por ação do Bem, nos próximos Jogos Olímpicos a atleta da Bielorrússia correrá pela “liberal” Polónia e as jovens afegãs representarão o novo Afeganistão da paz americana, de burka e atrás dos esposos! Pelo seu lado, o Mal, a Federação Russa, acusada de dopping descontrolado desde os tempos da URSS, limitou os estragos da politização dos Jogos, desfuncionalizando a sua equipa. Os atletas representam o comité olímpico russo, ROC na sigla inglesa! Passaram à iniciativa privada, deixaram de ser funcionários públicos, o estatuto da enorme maioria dos competidores de Estados de economia de mercado (incluindo os portugueses), que recebem salários governamentais como embaixadores dos seus países e prémios comerciais pelos produtos que promovem.
O outro ponto revelador da esquizofrenia que atacou os Jogos Olímpicos foi o relevo dado ao stress dos e das atletas. Não aguentam o esforço que deles e delas é exigido, sofrem de perturbações mentais, claudicam. O estádio olímpico surgiu assim como uma mistura de Monte Gólgota, o lugar na Palestina até ao qual os condenados arrastavam a cruz onde morreriam, exauridos, e as tenebrosas fábricas da revolução industrial que obrigavam os operários a trabalhar 16 horas por dia, ou as minas inglesas que sufocavam os mineiros com o metano. Os e as atletas olímpicos afinal carregam uma cruz e são proletários explorados pelo capital, embora possam não ter consciência disso, pois choram em vez de fazer greve! Compreende-se a sua voluntária servidão. É historicamente sabido que o desporto funciona como um elevador social. Os atletas são a componente sã de um embuste de paz e concórdia, de leal disputa, de mérito, à escala planetária e é compreensível que a maioria dos atletas se sinta sinceramente feliz com os aplausos e a notoriedade social alcançados! No final do seu número olímpico garantiram perante as câmaras e os microfones terem trabalhado muito muito para ir aos Jogos.
Nem uma palavra se ouviu durante os Jogos sobre o facto de, atrás dos atletas olímpicos, se encontrarem mais de 780 milhões de pessoas a viver abaixo do Limiar Internacional da Pobreza (menos de 1,90 dólar por dia), de, segundo a OIT (Organização Internacional do Trabalho), existirem 168 milhões de crianças a trabalhar em situações que comprometem a sua saúde e o seu desenvolvimento e de haver cerca de 21 milhões de pessoas escravizadas, nem dos milhões de refugiados que sofrem e morrem para fugir da guerra, que acabam afogadas, exaustas, nos mares e rios que separam continentes e Estados!
Nestes Jogos, os atletas surgiram diante de nós já como espécie de anunciantes de uma pós-humanidade! Nestes Jogos nem existiu a componente de festa, de relacionamentos e relações entre os atletas. A aldeia olímpica reproduziu uma fortaleza de uma seita guerreira com votos de cega obediência, castidade e clausura. Até as camas foram concebidas para não permitirem uma relação sexual desopilante. Faltou, talvez, a castração que desde a antiguidade foi praticada em seres destinados a determinadas atividades. Estamos perante uma nova espécie e uma nova sociedade violenta, regida lei do mais forte, que os novos filmes e séries de super-heróis e catástrofes apresentam como “o futuro”. Veneno político, base dos nacionalismos, dos cataclismos sociais.
Enquanto cidadão português estes Jogos Olímpicos também me elucidaram sobre a primeira caraterística que alguns compatriotas militantes das teorias de supremacia e exclusão escolheram para apurar a “raça” dos portugueses neste cenário de desconstrução de valores: através do seu tom de pele. O “bronzaline” como atestado de nacionalidade no século vinte e um! Lançaram ainda a questão dos nomes. Uma pessoa ter como prefixo Cá, ou Ma não é aceitável para representar Portugal, nem para celebrar uma medalha com a bandeira nacional! Solução: enviar uma delegação aos próximos jogos com Silvas para as modalidades populares e Pios e Sanchos para as mais aristocráticas, estes com um sudário de linho! Ao tom de pele e do nome os racistas proporão em seguida, naturalmente, a eliminação dos deficientes, dos diferentes. Não resisto a lembrar que, para a apanha dos morangos, do melão ou do tomate, Portugal importou e importa delegações de atletas do Bangladesh, da Tailândia, mas aos racistas só os incomodou o cubano do triplo salto!
Os Jogos Olímpicos, tal como os espetáculos dos coliseus romanos, apenas são e foram importantes enquanto reveladores das taras de uma sociedade no final de uma era. Estes, os de 20–21, foram importantes porque ainda se realizaram. Quanto aos próximos e os a seguir aos próximos, não sabemos! E já não falo em realizá-los em Kabul, ou em Havana, ou no Haiti, ou em Manila, ou em Riad, mas em qualquer parte do mundo, nas florestas do Congo ou da Amazónia, se ainda existirem, ou num qualquer local com condições — as verdadeiras condições — de vida humana!