A religião do Ocidente não é a deste papa
E se algum ou alguma dos e das coristas que matraquearam vulgaridades e sopraram bolas de sabão sobre a Jornada Mundial da Juventude tivesse perguntado qual a causa pela qual os jovens participantes estariam dispostos a lutar?
Os grandes eventos devem suscitar interrogações. Conta-se que quando Moisés desceu do Sinai com a tábua dos 10 Mandamentos, anunciando que estes lhe haviam sido entregues por Deus, um dos assistentes lhe terá perguntado porque não viera Deus em pessoa transmiti-los. A história não relata o que aconteceu ao interpelante.
As religiões são sempre a transmissão de uma mensagem através de um mensageiro. Os céticos consideram que os mensageiros são os autores das mensagens. e procuram decifrar as mensagens. Os crente acreditam no que os reconforta, o mensageiro é apenas um cantor de canções de embalar. As suas palavras são meros sons que lhes ameniza as angústias. Nas religiões das sociedades mais complexas os crentes que constituem a massa não têm direito de fazer perguntas incómodas aos grandes mensageiros. Resta-lhes ouvir e acreditar no que já acreditavam. Mas há, ou haveria a possibilidade de perguntar o que pensa quem está a meu lado. Não ouvi nem vi alguém a perguntar.
Eu perguntaria o que pensam os jovens católicos (em particular aos franceses) dos jovens suburbanos que participaram nos incêndios e conduziram os motins de há um mês nas cidades francesas. E o que pensam os jovens católicos (em particular os norte-americanos) do embargo a Cuba, da invasão do Iraque, do Afeganistão, e da Síria, esta que até tem uma respeitável comunidade cristã, e o que pensam os jovens italianos sobre os migrantes do norte de África, e aos jovens de África perguntaria o que pensam da extração de matérias-primas dos seus territórios por grandes companhias ocidentais e assim por diante, incluindo o que pensam os sul-americanos da desflorestação da Amazónia ou do genocídio dos indígenas. Havia tantas perguntas a fazer aos jovens que vieram a Lisboa!
Mas não. As Jornadas Mundiais da Juventude foram criadas pelo papa João Paulo II para proporcionarem um palco e uma audiência ao papa e não para dar um palco e uma audiência aos jovens! Pelo seu lado os grandes meios de comunicação cumprem a função para que foram convocados, dar voz ao papa. Não estão interessados, nunca estão, nas causas das coisas, mas no espetáculo das coisas. Reduziram a interpretação de um grande acontecimento social e político ao mais rasteiro folclore. À semelhança, aliás, do que fazem com o futebol, outro grande fenómeno social, um fenómeno social total, como as religiões, motivador de emoções, gerador de grandes negócios, de interesses de toda a ordem e que é reduzido pelos fabricantes de alienação a qualquer coisa do género: vinte e dois tipos/as de calções a correr atrás de uma bola. Perguntar a um jovem participante nas JMJ porque veio a Lisboa e ficar todo contente ao ouvir a resposta: Ver o papa, equivale a interpelar um adepto do futebol e perguntar-lhe porque veio ao estádio e ele responder: Vim ver o Ronaldo. As horas em que as câmaras de televisão seguiram o carro do papa são as mesmas em que seguem o autocarro das equipas de futebol a caminho do estádio! Não é um acaso, é uma estratégia de neutralização de questões.
Não existe inocência nas abordagens que a comunicação social de massas faz aos grandes eventos, nem sequer a da incompetência dos repórteres e diretores de comunicação. O primarismo das questões é deliberado, nem é novo, aliás. Comparar o papa da Igreja Católica a uma estrela do futebol até tem antecedentes anedóticos aqui em Portugal, na figura do comendador Santos da Cunha, governador civil de Braga, beato e queirosianamente populista, que numa celebração do 28 de Maio de 1926 se virou para Salazar e lhe atirou com esta pérola: «Vossa Excelência é o Eusébio do governo!» Os atuais comunicadores, com Marcelo Rebelo de Sousa à cabeça não desmerecem de Santos da Cunha bem poderiam ter dito: Vossa santidade é o Messi da nossa Igreja!
Mas a JMJ foi e é mais do que aquilo que as instituições de poder político e religioso pretendem que os cidadãos dela se apercebam. A mensagem do papa esteve e está em contra corrente da ideologia dominante no Ocidente. Daí tudo ter sido feito para a silenciar debaixo do ruído dos fait divers, das bênçãos das criancinhas e dos atiradores nos telhados. Por isso a sua mensagem foi submersa por infindáveis horas de “reportagem de encher chouriços” e comentários de comadres e compadres.
A mensagem do papa Francisco nas Jornadas Mundiais da Juventude centrou-se no “outro”, nos outros, na ideia de aceitar os outros, de servir os outros, numa proposta de generosidade. Esta mensagem é herética, porque a ideologia dominante no Ocidente é centrada no “eu”, no individualismo. Por isso a mensagem centrada no outro foi diluída pelos intérpretes numa calda de vulgaridades e de ridículo que começou logo com a sacudidela de Marcelo à chegada. Estava dado o mote pelo mais alto magistrado da Nação Católica aos jovens católicos. O papa é um boneco. Pensem no papa como uma representação do vosso mundo e não como um estímulo para questionarem os seus fundamentos.
Gostaria de perguntar o que pensam os jovens vindos para JMC do facto de Adam Smith, o filósofo considerado o pai das teorias económicas do capitalismo liberal, a religião dominante à escala global imposta pelo Ocidente cristão, autor de «A causa da riqueza das nações» considerar que o egoísmo das pessoas redunda no bem comum. Que o egoísmo é, então, o motor da sociedade cristã!
Adam Smith não se ficou pela simples enunciação do valor cristão do egoísmo. Explicitou as virtudes do individualismo e do egoísmo: “Na verdade, o indivíduo geralmente não tem intenção de promover o interesse público, nem sabe o quanto o promove. Ao preferir sustentar a atividade doméstica e individual que a destinada à sociedade exterior, ele tem em vista apenas a sua própria segurança; e, ao dirigir essa atividade de maneira que a sua produção seja a de maior valor possível, ele tem em vista apenas o seu lucro. O indivíduo é guiado por uma mão invisível a promover um fim que não fazia parte de sua intenção.”
Isto é, para o grande teorizador do capitalismo em que vivemos, que tem por referência moral o cristianismo nas suas várias igrejas, incluindo a católica romana, “o facto de este fim (o lucro da sociedade) não fazer parte da intenção dos indivíduos nem sempre é o pior para a sociedade. Ao procurar o seu próprio interesse, o indivíduo frequentemente promove o da sociedade de maneira mais eficiente do que quando realmente tem a intenção de promovê-lo.”
Em resumo, o modelo de sociedade que os cristãos — Adam Smith era um cristão fervoroso — impuseram o mundo enaltece o egoísmo como meio de realização individual e o bem da sociedade apenas é considerado um eventual ganho complementar. As faculdades de economia das universidades católicas e cristãs em geral assentam as suas lições na teoria do egoísmo de Adam Smith e não na generosidade.
O que pensam estes jovens católicos do modelo de sociedade fundado por Adam Smith e que até ao presente tem aprimorado e radicalizado os seus princípios de lei da selva e de fé na “mão invisível”, a metáfora que se tornaria a figura mais famosa do liberalismo económico, da concorrência, da vitória dos mais fortes e com menos escrúpulos?