A nostalgia da Europa

Carlos Matos Gomes
3 min readJul 23, 2023

“Europeu: aquele que tem nostalgia da Europa´”. A frase é de Milan Kundera e dá o título a um artigo muito elucidativo de Teresa de Sousa no Público de 23 de Julho de 2023. O artigo contém elementos que ajudam a perceber a estratégia dos Estados para a Europa e porque a União Europeia (a Alemanha em particular) nunca poderia ser uma potência política, económica e tecnológica autónoma.

Alguns elementos que podem ser retirados do artigo, em 2008 o PIB da zona Euro era apenas ligeiramente inferior ao dos EUA. Hoje, apenas passados quinze anos, o PIB americano aproxima-se do dobro. Em 2022 o rendimento per capita de um europeu era de 40,5 dólares e de 71,9 nos EUA. Dir-se-á que os europeus são mais pobres mas a sociedade europeia é globalmente mais justa. É verdade, mas o estado social europeu ocidental foi uma contrapartida para evitar a tentação socialista dos trabalhadores no pós-segunda guerra e para impedir a autonomia da Europa, principalmente os riscos da sua reunificação para os vencedores da II Guerra, prevenida pelos acordos de Ialta e de Potsdam entre os EUA e a URSS.

Escreve Teresa de Sousa: “As razões para o empobrecimento dos europeus estão estudadas: a capacidade da economia americana continua sem ter rival no que respeita à investigação e à inovação.” É uma verdade falaciosa. Falta explicar o porquê de atualmente ser assim. Até à II Guerra Mundial, meados do século XX, era na Europa que se concentrava a capacidade tecnológica e de inovação mundial, o conhecimento da matéria, do átomo, o conhecimento do universo, o conhecimento da química encontravam-se na Europa, dos Curie a Einstein, de Max Planck, Heisenberg, Von Braun eram europeus, assim como Alan Tuning, considerado o inventor do computador.

A questão para explicar a decadência e a subalternização da Europa é, pois, a de saber, ou procurar saber as causas da transferência do centro de inovação da Europa para os Estados Unidos. Esse processo está também estudado. Os Estados Unidos (e também a URSS) realizaram após a II GM uma verdadeira razia aos cérebros europeus, e não foram apenas os alemães, foi uma caça generalizada. Ofereceram condições de trabalho e de vida de alta qualidade aos melhores cientistas e pensadores. Esvaziaram a Europa dos seus cérebros. E não levaram só os cientistas já formados, atraíram também as novas gerações de estudantes de alto potencial através de generosas bolsas de estudo e de estágios. As universidades americanas, sustentadas em grande parte pelos grandes complexos industriais e pela banca constituíram um instrumento estratégico que agiu e age em todas as áreas: a investigação para ciência pura, para ciência aplicada e para a manipulação do pensamento e do comportamento através dos think tanks e da indústria do entretinimento (cinema, audiovisual).

A submissão da União Europeia dos Estados Unidos que a guerra na Ucrânia evidenciou é o resultado de uma estratégia de guerra longamente pensada e friamente executada, em que um potencial competidor é lobotomizado e castrado para não representar um perigo futuro. O melhor do pensamento e do saber europeu foi sugado como compensação pela intervenção dos EUA (e também da URSS) na II Guerra. A Europa não perdeu de um dia para o outro (em meio século), a sua capacidade de produzir saber que gerou seres como Galileu, Leonardo da Vinci ou Newton.

A guerra na Ucrânia surge num momento em que a União Europeia (a Alemanha em particular) estava em vias de se autonomizar em termos de fornecimento de energia através dos acordos com a Rússia, dominava a economia dos ex-países do Leste, em particular a Polónia e era o mais forte parceiro europeu da Turquia. A guerra na Ucrânia, preparrada desde 2014 (pelo menos) resulta do entendimento dos Estados Unidos que um novo bloco dotado das capacidades militares e espaciais da URSS, com as capacidades científicas alemães, e com a demografia e a posição estratégica da Turquia colocavam em causa o seu domínio hegemónico, em particular no Médio Oriente e na Ásia Central.

Os acordos de transferência de dados da Europa para as centrais de processamento de informação nos EUA estabelecidos pela senhora Úrsula Von Der Leyen e pela Comissão Europeia, num processo sombbrio, sem alarido e feitos com a cumplicidade da comunicação social corrompida até ao âmago, são uma garantia de que nenhuma inovação e autonomia é autorizada, ou concedida à Europa.

Resta a nostalgia dos europeus pelas suas inovações artísticas, as suas catedrais, as suas esculturas e pinturas, a sua música e dança, os seus livros, os seus pensamentos.

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