A extrema-direita faz parte do sistema — não se assustem!

Carlos Matos Gomes
10 min readFeb 13, 2024

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As campanhas eleitorais que se estão a desenvolver em vários países europeus têm um tema central que as máquinas de propaganda se encarregam de dramatizar até ao limite, a bem das audiências e do entorpecimento dos cidadãos em geral: a extrema-direita entra nas contas para os governos ditos democráticos e é um perigo para a democracia ou não?

A questão lembra-me as sessões de luta-livre americana, em que há sempre um vilão e os resultados estão decididos à partida. Todos, os lutadores, o árbitro e os empresários, os locutores e comentadores, os treinadores fazem parte do espetáculo. Os jogos que as televisões portuguesas têm apresentado em direto são programas de entretenimento e adormecimento: fazem de conta que existe um mau da fita e que este coloca em perigo a liberdade de decisão dos cidadãos e a sua intervenção nas decisões tomadas em seu nome. O mau da fita representa o seu papel de arruaceiro e o público assobia, ou aplaude.

O jornal El País publicou a 10 de fevereiro um texto de Andréa Rizzi, editor de assuntos globais sobre as “democracias cativas das minorias”. O artigo tem interesse por ser um exemplo da pasta de hambúrguer que é hoje em dia o recheio do pensamento dominante dos dirigentes europeus e dos fazedores de opinião europeia sobre o conceito de “democracia”.

O autor tem um bem guarnecido currículo europeu. Editor-chefe da secção Internacional e vice-diretor da secção de Opinião do El País, licenciado em Direito (La Sapienza, Roma), mestre em Jornalismo e em Direito da UE. Está, pois, habilitadíssimo a promover a falácia sobre a democracia que trouxe a Europa até ao impasse em que vive e da qual não sairá porque está em morte cerebral. Tal como os políticos europeus, o jornalista tem um pensamento redondo e liso sobre o regime que os poderes dominantes impuseram como sendo o padrão de democracia e que conduz à frase resumo dos populistas: eles são todos iguais. De facto, se não são, são ramos do mesmo tronco.

Andréa Rizzi escreve sobre os inimigos que ameaçam a democracia “a incapacidade de construir políticas de Estado sobre questões básicas permite que grupos minoritários em posições influentes obtenham enormes retornos e que os regimes autoritários observam com alegria esta fraqueza das democracias polarizadas.”

Não sei o que seja uma democracia polarizada, mas sei que se os atuais dirigentes europeus são incapazes de construir políticas, isto é, dar respostas a problemas da vida em sociedade sobre questões básicas, é natural que surjam alternativas. A questão é, pois, de aptidão e competência para definir políticas e realizá-las. Os inimigos da democracia são os que corrompem por dentro o seu princípio matricial, a participação dos cidadãos.

O autor, como está na moda, reduz o essencial do conceito de democracia ao voto em representantes. É uma redução deliberada e falaciosa. É a corrupção do conceito de democracia que os grupos dominantes promovem através da comunicação social, porque lhes permite validar o seu domínio com a “vontade popular”. É pura manipulação, que tem fundamentos teóricos — leia-se Capitalismo, Socialismo, Democracia, um livro do economista austríaco Joseph A. Schumpter (basta ir ao Google) — para ficar a saber como o autor (muito respeitado) restringiu a democracia a um mero arranjo organizacional de seleção de elites que competem entre si pelo voto do povo através de uma disputa eleitoral que lhes permite legitimar as suas decisões. É o que se chama uma conceção “procedimental” e minimalista da democracia, mas é a conceção em vigor e consolidada.

Dentro destas baias, que são a Bíblia das elites ocidentais, Andréa Rizzi considera que o “protesto dos tratores que está a abalar vários cantos da Europa põe em evidência problemas importantes das democracias, cujos equilíbrios de poder e mecanismos de funcionamento são muitas vezes tão frágeis que a ação determinada de uma minoria numa posição estratégica é suficiente para provocar reações políticas transcendentais”. A estabilidade é o bem supremo a ser garantido a todo o custo pela “democracia”. Não se mudam os sapatos, há, sim, que adaptar os pés! Na realidade o que os protestos, mesmo que sejam de uma minoria, evidenciam é o resultado de uma política, entendida como a aplicação de uma ideologia a uma sociedade, em que os cidadãos nada de fundamental decidem. Em que o essencial dos interesses está definido à partida, é imutável e assenta em dois pilares: a propaganda e a finança.

O protesto dos agricultores tem as mesmas causas do protesto dos candidatos a comprar casa, dos doentes à espera de consulta, dos reformados a propósito das pensões, dos motoristas de camiões, dos polícias, dos médicos e enfermeiros do SNS. Tem uma origem conhecida e escamoteada pela propaganda (informação é coisa que não existe): a ditadura da finança. O Banco central Europeu, essa democrática instituição, empresta dinheiro apenas aos bancos a 2% de juros, estes emprestam dinheiro aos que querem abrir um negócio, comprar uma casa, adquirir um bem, a 8% (os valores serão mais ou menos estes). O agricultor vende um quilo de um produto a um valor X a uma empresa de grande distribuição, que o vende ao público a 5X e mantem o diferencial no banco a render a 90 dias. O banco empresta esse dinheiro a 8X. Pessoal dos serviços nacionais de saúde protestam em toda a Europa porque a sua falência proporciona o desenvolvimento dos negócios da medicina privada, geradora de investimentos da banca e de avultados lucros. Não há votos que legitimem esta ditadura. Mas este regime é apresentado como essencialmente democrático e o que o ameaça, segundo o pensamento dominante, é a extrema-direita! Não é. É a usura, um velho termo caído em desuso que nenhum partido do “arco da governação”, e muito menos a extrema-direita, aqui em Portugal o Chega e a Iniciativa Liberal, a versão hard e a versão soft do neoliberalismo, prevê eliminar ou limitar.

O editorialista do EL País reconhece que “o protesto agrário é notável como mobilização e que esta, infelizmente, é instrumentalizada pela direita, mas como já conseguiu um forte impacto no debate político, as instituições de Bruxelas farão concessões”. Pois farão, como sempre fazem, como o farão com a habitação, ou com a saúde, mas não farão concessões em nome da democracia, nem para satisfazer uma justa pretensão, mas porque são máquinas de girar e centrifugar o dinheiro que proporciona lucros e poder às oligarquias financeiras e atirar dinheiro para a multidão faz parte das receitas vindas da antiguidade de os nobres o lançarem mãos cheias de moedas àqueles cujos protestos causam maior impacto. Os subsídios aos agricultores acabarão por ir parar à banca, através da inflação que provocam (as empresas de distribuição e a banca jamais abdicarão das suas percentagens de lucro), e o mesmo acontece com a habitação, os subsídios à compra de casa cujos juros os “liberais” propõem que sejam pagos pelo governos, ficando o Estado a subsidiá-los a bem dos lucros da banca e da “financiarização” da política, da sujeição da política à finança. O jogo de protestos e negociações está viciado à partida e não é de democracia que se trata.

A direita aproveita-se dessa causa? Perguntem à direita se tem um programa financeiro alternativo ao sistema bancário cujo vértice é o FED (o banco central dos EUA), a que se juntam o Banco Mundial e o FMI, ou à bolsa de Wall Street. No debate entre o Raimundo do PCP e o Ventura do Chega, este demagogo perguntou a Raimundo se ele era contra o Euro. Não sendo o Euro o fundo questão, o que acontece que o BCE é, porque o emite a um dado valor que contempla os interesses dos usurários (dos banqueiros e financeiros) contra o dos cidadãos.

O perigo do crescendo da extrema-direita que o editorialista refere, sem nunca explicar o que materializa o perigo, é o de ela introduzir uma violência descontrolada que perturbe a velocidade mais conveniente ao dínamo do sistema financeiro, uma velocidade que este determina através dos governos e dos partidos políticos tradicionais.

A manutenção da extrema-direita europeia no limbo em que ainda se encontra resulta da avaliação da sua utilidade que os grandes grupos financeiros fazem, pois são eles que a financiam, como financiam os partidos tradicionais: É mais vantajoso ter perto do poder uma extrema-direita xenófoba que provoque a rejeição de emigrantes, com o consequente aumento do custo da hora de trabalho e a obrigação dos europeus realizarem tarefas pesadas, sujas e mal pagas, ou mantê-la afastada de forma a garantir uma reserva de mão-de-obra através da emigração? Quando é que a extrema-direita deve ser utilizada para promover agitação social (greves de médicos e enfermeiros, de motoristas, de polícias, de agricultores, juízes e procuradores) que passem a ser mais vantajosas do que investimentos na construção civil, na exploração de matérias-primas, na hotelaria ou turismo? A aproximação da extrema-direita do poder resulta da análise que os seus investidores fazem da sua utilidade na realização das suas estratégias e não do seu perigo.

Adianta o comentador do El País “que na história recente da Europa há vários casos de meia dúzia de assentos parlamentares que exercem uma influência absurda, ou de setores muito minoritários que, por uma razão ou outra, têm uma capacidade de pressão exorbitante.” E mais: “Isto é democracia, dir-se-á.” Pois é, digo eu, e também: o que não é democracia é a política (e a democracia) ser determinada por meia dúzia de assentos não parlamentares, ocupados por desconhecidos sentados em cadeiras ergonómicas à volta de mesas de tampo brilhante, em salões insonorizados no topo de arranhas céus, ou em bunkers isolados das vistas e dos ouvidos dos cidadãos, onde têm lugar os governadores dos bancos centrais, que ninguém elegeu, ou os membros da elite dos clubes financeiros, do tipo Bieldberg, ou os mágicos manipuladores dos centros de estudos, os think tanks de grandes fundações que têm multimilionários como patrocinadores, ou os administradores dos grandes fundos de investimentos que dominam as bolsas de valores. A democracia é evitar a tirania dos que nos determinam o valor do dinheiro que temos e recebemos, o quanto podemos comprar com ele, quanto temos de pagar por uma casa, por um quilo de batatas, por um litro de azeite, por uma semana de férias, por uma operação cirúrgica, por um medicamento, um livro, ou um casaco. E, dado que o artigo também refere a guerra na Ucrânia, democracia é ter direito a saber as causas e poder intervir na decisão de a Europa meter a cabeça no laço que a estrangulará.

Considera o autor, como muitos comentadores de largo espetro televisivo que nos Estados Unidos o desbloqueamento da ajuda à Ucrânia se transformou numa provação devido à mera “politiquice” entre Democratas e Republicanos. É não perceber (ou não querer que os outros percebam) nada dos americanos: os oligarcas que governam os Estados Unidos desde a fundação — os “gloriosos foundig fathers” — agiram sempre e apenas de acordo com os seus interesses, o impasse não é politiquice, é conflito de interesses entre grupos oligárquicos, não existe nenhuma disfunção no topo de política dos EUA, o que menos incomoda os políticos americanos é o direito, a razão, ou o interesse dos outros. E o mesmo se diga da questão do genocídio dos palestinianos. O que interessa aos EUA é manter o domínio no Medio Oriente através de Israel sem ultrapassar o limite em que surjam acusados de cumplicidade por outros atores políticos importantes, de ponderar quando as vantagens do apoio ao massacre passam a ser menores do que os inconvenientes. Pura análise de vantagens e inconvenientes. A observação da atitude das democracias europeias perante a guerra na Ucrânia e o genocídio na Palestina expõe o conceito em vigor de democracia europeia: os cidadãos podem reclamar (não muito alto), mas a política europeia em nada se alterará. Atirar dinheiro para calar reivindicações, sim, é democrático, considerar as vozes que questionam as decisões fundamentais não é!

A ação das minorias não é contra a democracia, é o resultado de políticas decididas sem intervenção dos instrumentos da democracia: a consulta e a participação.

A fraqueza das denominadas democracias europeias do pós Segunda Guerra não está na maldade dos americanos, dos russos, dos chineses, ou dos guerrilheiros que disparam sobre os barcos que se dirigem ao canal do Suez, está no regime de ditadura financeira, no servilismo dos dirigentes europeus aos interesses da finança, na negação dos valores que a Europa do pós-guerra foi considerando seus depois de séculos de colonização e de colonialismo de imposição de um poder baseado na força e na convicção da superioridade cultural.

A decadência das democracias europeias tem hoje um centro interpretativo, com figuras e cenas ao vivo — tipo sex shop — em Israel. A Europa pode rever-se hoje nesse espelho. O nazismo nasceu da fraqueza dos que se diziam democratas e afinal eram obedientes funcionários públicos, como declararam no tribunal de Nuremberga.

Por fim a questão exemplar da agricultura europeia e da política da União Europeia. De acordo com o Eurosat, em 2019 o setor agrícola ocupava 9,5 milhões de europeus e 3,8 milhões na produção alimentar, a agricultura contribuía com 1,3% do PIB europeu. A UE atribuiu ao conjunto de 27 países 38,2 mil milhões de euros à política agrícola, 13,8 mil milhões para desenvolvimento rural e 2,4 mil milhões ao mercado de produtos agrícolas. No total 54, 4 mil milhões. Há pouco, a mesma UE atribuiu 50 mil milhões à Ucrânia. Em conclusão: Os agricultores são uns chatos antidemocratas e os ucranianos chefiados por Zelenski uns democratas de primeira apanha!

Os vários protestos que ocorrem na Europa podem estar a ser conduzidos pela extrema-direita, mas a extrema-direita apenas está a geri-los em nome de outros interesses. Nunca colocou em causa o poder do BCE, nem as guerras em que a Europa se envolveu seguindo os EUA no Iraque, na Síria, no Afeganistão, no Kosovo, na Ucrânia e na Palestina, nunca colocou em causa os muros no México, nem em Gaza, nem as despesas colossais com o rearmamento da Europa, nem a inevitável desindustrialização da Europa causada pelo aumento do preço da energia devido às sanções à Rússia, sobre as quais os cidadãos europeus não foram, democraticamente, chamados a discutir. A extrema-direita faz parte de um “sistema” em que “democracia” passou a ser uma palavra sem sentido, em que o rótulo não corresponde ao conteúdo.

Estas “imparidades” pagam-se caro. A solução habitual para resolver os grandes impasses é uma grande guerra de destruição de bens materiais e humanos. O discurso da guerra já está na ordem do dia nos dirigentes europeus e não é por acaso que falam sempre de armas nucleares. A extrema-direita também não ameaça esta solução, apoia-a. Faz parte da NATO.

Deixo o link para o artigo do El País.

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Carlos Matos Gomes
Carlos Matos Gomes

Written by Carlos Matos Gomes

Born 1946; retired military, historian

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