A desratização da Palestina

Carlos Matos Gomes
4 min readAug 31, 2024

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Porque é a chacina dos palestinianos do “nosso” interesse? O pronome pessoal “nosso” representa o “ocidente global” de que, queiramos ou não, fazemos parte. Mesmo os que não frequentam as sessões espiritas das televisões.

A chacina dos palestinianos é uma desratização em larga escala. Nós, os do ocidente, apoiamos a desratização e não só apoiamos como pagamos. É o “ocidente global”, nós, que apoia politicamente e que paga a desratização dos palestinianos. Somos nós que tratamos os palestinianos como ratos que têm de ser eliminados! Não nos envergonhemos: para nós um palestiniano é um rato!

O orçamento de Israel, o nosso agente executor da desratização, é pago por nós através de emissão de dólares pelo Fundo de Reserva Americano, o FED. Moeda, o dólar, sem qualquer base material (Fractional reserve lending) e que se faz dela, para sobreviver, e bem, um fator determinante do jogo da inflação, das taxas de juro variáveis consoante a necessidade, dos ciclos de crescimento e de depressão, da manipulação dos preços através das dívidas soberanas.

Pagamos a desratização da Palestina porque Israel é o que resta enquanto arma decisiva para estratégia de poder ocidental, isto é, de manutenção dos Estados Unidos como superpotência dominante no planeta. E a desratização é levada a cabo com a carnificina que choca não por que os executores não tenham a consciência do desgaste na opinião pública que causam as imagens de violência de casas e seres (pessoas?) a serem bombardeadas por artilharia pesada, aviação, cargas de explosivos de alta intensidade, bombas de fósforo, snipers — ninguém gosta de ver um rato a estrebuchar — mas porque outros métodos de desratização poderiam causar risco aos desratizadores, como seria induzir uma epidemia de cólera em Gaza ou na Cisjordânia. A vida e a súde dos israelitas tem de ser preservada. Um avião F35 pilotado por um terrorista é muito mais preciso que um vírus.

Não é por acaso que os dois candidatos a presidente dos Estados Unidos estejam de acordo com a defesa de Israel a todo o custo e custe o que custar.

A estratégia de domínio que foi a doutrina dos Estados Unidos em vigor desde os anos 90 do século 20 aos anos 20 do atual — que substituiu a doutrina da Contenção e Détente da Guerra Fria — assentava em dois vetores, atacar a Rússia na barriga mole da Eurásia — que originou a guerra na Ucrânia — e manter a tensão no Médio Oriente para controlo do petróleo e do tráfego entre o Pacífico e Atlântico, utilizando Israel como agente desestabilizador.

A guerra da Ucrânia está já em estado de vida aparente. Foi desencadeada com base num mau estudo de situação em que os desejos de alguns aparatchiks que serviram as administrações democratas e republicanas confundiram desejos com realidade. cometeram o erro que a sabedoria dos índios traduziu no aforismo: não se deve cutucar a onça com uma vara curta. Hoje não há qualquer hipótese de implantação de uma base americana na Ucrânia e do que se trata é de encontrar uma saída sem humilhação — o episódio de Kursk é exemplar. Resta Israel como carta ao “ocidente global” na fachada atlântica do seu teatro de operações com a China, quando o confronto passar para o Pacífico.

Contudo, para Israel ser o grupo Wagner dos Estados Unidos não pode estar envolvido em questiúnculas internas com palestinianos que são animais, como afirmou o seu ministro da defesa. Para a clique dirigente de Israel (e Netanyahu representa os interesses profundos dos israelitas, não é um extra-terrestre), o que está em curso é uma operação de desratização da Palestina e nós, os do Ocidente, somos os financiadores dos desratizadores e os fornecedores dos venenos com o armamento e o financiamento que lhes entregamos.

Não passam de vaselina para lubrificar o que custa a fazer admitir as afirmações mais ou menos piedosas que justificam a desratização da Palestina com o “terrível” massacre (tem de se afirmar sempre que a sortida dos palestinianos contra os que os cercavam em Gaza é terrível, um terrível massacre), com o direito de Israel à existência, quando o que está em causa desde 1948 é o direito dos palestinianos à existência; ou a libertação de uma centena de reféns israelitas, quando existem dezenas de milhar de reféns palestinianos em Israel, restando ainda os líricos que referem a fantasiosa solução de dois estados — um vivo e armado e um morto e enterrado — quando o que há cinquenta anos o Ocidente global está a construir é um Estado-baluarte, que é até um estado nuclear clandestino, à margem de qualquer controlo internacional, mas que nós, os do Ocidente, fingimos ignorar e ainda invocamos em nossa defesa o Direito Internacional, que é mais ou menos uma pastilha elástica.

As duas esquadras americanas na região, com armamento nuclear, estão ali para garantir que a desratização é completa e tem de ser executada até às eleições americanas. Até Novembro a eliminação de palestinianos e das suas comunidades vai continuar de modo a próxima administração se apresentar de mãos lavadas e perguntar: Palestina? Mas o que é isso?

A tomada de Jerusalém pelos cruzados há mil anos não foi muito diferente do que está a acontecer hoje. O que significa que estamos — os do Ocidente — a cumprir a tradição e a agir de forma coerente com os nossos valores.

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