25 de Abril — Soube-me a pouco — soube-me a tanto
Hoje soubeme a pouco
Passa aí mais um bocadinho
Hoje soubeme a tanto
…
Sérgio Godinho
Celebrar hoje o 25 de Abril é exaltar o muito que a sociedade portuguesa alcançou com o golpe militar dos capitães. É celebrar a transformação que os portugueses levaram a cabo para fazer da acção militar um profundo movimento social e político. É celebrar uma verdadeira revolução com a conquista de direitos essenciais de expressão, de associação, de manifestação, da plena cidadania das mulheres, à educação, à saúde, à liberdade sexual. É celebrar o fim da guerra e do colonialismo. É celebrar a reintegração de Portugal, velha nação europeia, na Europa e na comunidade internacional como um elemento ativo na construção de um novo grande espaço de progresso e de convivência num mundo de tensões, na promoção da paz, no respeito pelas outras culturas.
Tudo correu bem? Não. Mas alguém esperava que tudo corresse bem? E alguma vez uma transformação social radical correu a pleno contento de todos? A Revolução Francesa correu bem? E a Revolução Russa? E o pós I Grande Guerra correu bem? Conduziu à II Guerra Mundial! E a vitória dos Aliados na II Guerra Mundial correu bem? Promoveu o terror nuclear, dividiu o mundo em dois blocos! E o movimento descolonizador? E, já agora, o judaísmo, cristianismo, o islamismo correram bem? Produziram quantas guerras religiosas?
E foi por não terem corrido bem, isto é à medida da utopia de cada um, do paraíso imaginado por cada um que alguém pode dizer que não valeram a pena a revolução francesa, ou a russa, ou a vitória dos Aliados na IGG e na IIGM?
O 25 de Abril é o resultado da resistência, da consciência, da luta e do sacrifício de homens e mulheres numa dada circunstância história. O resultado do 25 de Abril é o que a sociedade portuguesa conseguiu. Já assim foi nas guerras liberais na luta contra o antigo regime do absolutismo real, ou na implantação da República.
Celebramos o que conseguimos. E não foi pouco. Hoje reunimos forças para alcançar o que pretendemos para o presente e para o futuro, o que também não é pouco.
É estultícia perguntar se o 25 de Abril valeu a pena. A História não é uma sequência de quadros de revista em que uns são mais conseguidos que outros. A História é uma resultante de forças, de vontades, de interesses, de vitórias e de derrotas. O 25 de Abril não é obra de um homem, nem até de um grupo de homens. É obra de um povo. Os “capitães de abril” são e foram responsáveis pelo derrube de um regime, pelo golpe de Estado. E, após esse acto, participaram das transformações segundo a sua consciência, fornecendo a força das suas armas para as levar a cabo.
No caso do 25 de Abril, o impulso para a revolução foi dado, como em todas as revoluções, por uma aliança da parte da sociedade mais esclarecida com a mais desfavorecida. Durante um tempo, que durou de 28 de Setembro de 1974 (1º golpe de Spínola) ao Verão de 75 (Assembleia de Tancos), a fação mais progressista deteve o poder das armas para apoiar as forças populares. E isso foi 25 de Abril. Mas a assembleia de Tancos e o subsequente 25 de Novembro alteraram a relação de forças dos interesses que determinavam o processo revolucionário. E isso também é 25 de Abril. O 25 de Novembro também é resultado do 25 de Abril. É o 25 de Abril da parte dos que nada mais pretendiam obter que um regime formatado à medida das democracias ocidentais, e que esse objetivo era tudo o quanto lhes bastava.
Não existe um 25 de Abril de 74 traído pelo 25 de Novembro de 75. Existe sim, em 25 de Novembro, um 25 de Abril que não assustasse nem ofendesse os capitalistas (as famílias donas de tudo isto), que não questionasse a NATO, nem o domínio dos americanos no espaço que consideravam o seu na divisão do mundo, que não levantasse uma onda de reivindicações na Europa, que, acima de tudo, não assustasse os franquistas espanhóis na sua transição para um regime de democracia representativa, sem alteração da distribuição da riqueza, um 25 de Abril dos que não aceitaram as independências das colónias com a transição do poder para os movimentos independentistas, dos que julgavam possível um certo tipo de neocolonialismo.
O grupo vitorioso na noite do 25 de Abril de 1974 representava uma aliança entre os “conservadores” spinolistas (para simplificar) que pretendiam uma democracia política de valores mínimos, sem colocar em causa a hierarquia social, nem o império colonial com cabeça em Lisboa, e os “progressistas” que estiveram na origem do Movimento dos Capitães, que se designou como “a comissão coordenadora do programa do MFA”, defensores de uma democracia social avançada e de uma real descolonização. Os dois grupos, que viam o regime de Caetano como um impasse bloqueador do futuro, aliaram-se para o golpe do 25 de Abril, mas não para o transformar numa revolução.
O processo revolucionário, o PREC, fez emergir um grupo intermédio, os ditos moderados do Grupo dos 9, que serviram os interesses dos conservadores e, logo que consagrada a vitória do 25 de Novembro, foram, como sempre acontece na história, engolidos pelos verdadeiros mentores, os que esperam que alguém tire do lume as castanhas incandescentes para não queimarem as mãos.
O que restou? Restou, felizmente, e é por isso que o 25 de Abril tem uma base de apoio ainda hoje tão alargada, uma sociedade essencialmente livre e com elevado grau de tolerância, uma sociedade que aos poucos se foi apaziguando, que manteve e mantem os direitos essenciais, uma sociedade pacífica, uma sociedade que conseguiu, ao contrário das outras grandes potencias coloniais como a Inglaterra e a França, integrar as comunidades oriundas das colónias, uma sociedade mais instruída e mais preparada para enfrentar os desafios da civilização do conhecimento e da informação, uma sociedade com um serviço nacional de saúde, com segurança social, alfabetizada, cosmopolita cujos elementos circulam com à-vontade pelo mundo e, com o mesmo à-vontade, recebem o mundo na sua terra.
É certo que existe hoje também uma sociedade de gritantes desigualdades sociais, de oportunidades, de empregos precários… mas Portugal é hoje uma sociedade que, graças ao 25 de Abril, muito construiu de bom sobre a miséria do fascismo e que dispõe da liberdade essencial para o muito que tem a construir contra as misérias do neoliberalismo.
Temos futuro. Devemos essa esperança ao 25 de Abril. É o 25 de Abril que nos proporciona as condições para lutar por uma vida melhor e para nos bater contra os inimigos da liberdade, contra o populismo das falsas promessas e das falsas notícias, contra a manipulação levada a cabo por uma comunicação social vendida ao “não há alternativa”, à desigualdade, à precariedade, à ditadura dos mercados, ao egoísmo, ao vale tudo.
Temos que nos bater contra as milícias mascaradas com o honrado nome de sindicatos, que realizam greves cirúrgicas com o intuito de desestabilizar, de corroer, de minar o regime democrático. Milícias idênticas às do fascismo e do nazismo, dos sindicatos nacionais da Legião Portuguesa. Milícias agora sem camisas negras, ou azuis, ou castanhas, em que as senhoras se apresentam de lenços de seda e os cavalheiros de Maserati, de falas mansas, mas com o mesmo ignóbil e egoísta objectivo de destruir as bases de solidariedade da sociedade e de acumular a riqueza numa minoria todo poderosa.
O 25 de Abril tem inimigos que como lobos se apresentam com pele de cordeiros. Inimigos que falam em nome de trabalhadores enquanto servem os exploradores e os opressores.
Defender o 25 de Abril é hoje defender o regime democrático. Há quem o queira destruir. Há que os enfrentar. Os vampiros andam por aí.
Carlos Matos Gomes